sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

ABANDONO DAS INSTITUIÇÕES: CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E UNIVERSIDADE

Blog  HISTÓRIA DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO, de autoria Álaze Gabriel.


Autoria:
Maria Inês Assumpção Fernandes. Instituto de Psicologia – USP

RESUMO:

O presente trabalho discute a proposta atual de reforma do ensino superior no país como decorrência das transformações da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Para tanto focaliza a discussão a partir de três eixos principais, a saber: a história recente da construção de políticas públicas na área de Educação e as implicações decorrentes da não discriminação do que seja Ensino Superior e Universidade; a definição das diretrizes para o ensino superior determinadas por organismos internacionais interessados na participação do setor privado sobre a Formação (profissional); e a identificação dos princípios que sustentam o modelo a partir do qual a reforma se apóia, ou seja, a construção das Diretrizes Curriculares para os cursos de Graduação e a consolidação de um Sistema de Avaliação para o Ensino Superior.

Descritores: Universidade. Ensino superior. Educação. Avaliação.

INTRODUÇÃO

Os estudos sociológicos têm mostrado, como nos informa Santos (1995), o quanto as contradições no sistema educativo podem encobrir articulações mais profundas entre os diversos sub-sistemas sociais. Citando Bourdieu e Passeron demonstra que o sistema educativo pode funcionar de tal forma que a contradição entre o princípio de igualdade de oportunidades e mobilidade social pela escola e a consolidação e aprofundamento das desigualdades sociais, não seja visível. Esse encobrimento estará dessa forma, legitimando uma ordem social estruturalmente incoerente que não se sustenta nas premissas igualitárias que o próprio sistema propõe.
Assim, entre os desafios que nos são colocados para reflexão, está sempre presente a preocupação com as novas funções atribuídas às instituições de ensino superior e particularmente à Universidade. O mal-estar democrático no qual vivemos, para além da má distribuição de riquezas, deve se à decadência e ao abandono das instituições públicas nas quais a desigualdade social e civil é, muitas vezes, mascarada por uma legislação que facilita o livre acesso às suas dependências, como se essa igualdade social e civil não pressupusesse pelo menos uma grosseira aproximação do que seja igualdade econômica.
A nova e contínua demanda pela formação superior e as mudanças na relação entre formação e exercício profissional estabelecem um outro lugar ao conhecimento supostamente entrelaçado ao cumprimento de uma tarefa político-institucional.
No Brasil há uma equivocada identificação entre Universidade e Ensino Superior. Este equívoco é mantido ora por quem
busca a autonomia universitária por razões empresariais, ora defendida como princípio por quem só reconhece como ensino superior aquele que se pratica em universidades plenas e dificulta entre nós a compreensão da dimensão da questão da universidade pública e de sua destruição. (Menezes, 1996, p. 10)
Devemos lembrar que por mais importante que seja a formação profissional superior, a Universidade foi criada para cumprir múltiplas funções dentre as quais o ensino superior, embora esta não seja sua finalidade exclusiva nem a principal. Elas foram criadas para transcender essa dimensão. São muito mais do que centros de formação superior ou de treinamento técnico. "Além da educação superior se promove cultura, se faz ciência e se desenvolve tecnologia" (Menezes, 1996, p. 9). Em qualquer análise sobre a situação do ensino superior merece atenção a sua evolução até a estrutura atual destacando "os processos de privatização, de modernização institucional e de gestão das universidades" (Cunha, 1998, p. 1).

SOBRE A UNIVERSIDADE

No que diz respeito à Universidade a situação, historicamente, tem sido complexa. A sociologia das universidades tem discutido suas funções e tem mostrado a existência de colisões. A função de investigação colide freqüentemente com a função de ensino. Neste domínio de ensino, os objetivos da educação geral e da preparação cultural colidem, no interior da mesma instituição, com os da formação profissional ou da educação especializada.
São - lhe feitas exigências cada vez maiores por parte da sociedade ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais restritas as políticas de financiamento de suas atividades por parte do Estado. Duplamente desafiada, pela sociedade e pelo Estado, a Universidade, de um lado, não parece preparada para enfrentar tais desafios, tanto mais que estes apontam para transformações profundas e não simples reformas parcelares. Tal despreparo, mais do que conjuntural, parece ser estrutural, na medida em que a perenidade da Instituição Universitária, sobretudo no mundo ocidental, está associada à sua rigidez funcional e organizacional, à sua relativa impermeabilidade às pressões externas, enfim àquilo que tem sido muitas vezes proclamado como a sua aversão à mudança. (Santos, 1995, p. 187)
Essa "aversão," contudo, procura resguardar a capacidade de discriminação em relação à preservação daquilo que é necessário para o cumprimento de suas funções políticas e sociais. O objetivo das reformas e das reestruturações curriculares tem sido freqüentemente o de manter tais condições sob controle, através da gestão cuja natureza é a de não intervir ao nível das causas profundas das contradições.
A educação está em crise e a universidade a segue. E esta crise expressa o conjunto das contradições que ela enfrenta: a luta entre uma produção de conhecimentos exemplares, da qual ela se ocupa desde a Idade Média, e a produção de conhecimento úteis para a formação de força de trabalho qualificada exigida pelo desenvolvimento industrial. Ela também convive com a contradição entre as exigências socio-políticas de democratização e de igualdade de oportunidades e a hierarquização dos saberes especializados, garantida pela restrição de acesso e credencialização de competências; convive com a luta entre a reinvindicação de autonomia quanto à definição de valores e a submissão crescente a critérios de eficácia e de produtividade, herança do poderio empresarial. Qual seu novo lugar? São contradições superáveis?
O momento atual no Brasil, nos convoca a averiguar as múltiplas determinações que estão presentes nessas novas exigências dirigidas à Universidade e a identificar as brechas possíveis para a superação desses impasses. As principais linhas de questionamento quanto ao seu papel nos novos tempos dizem respeito às crises de legitimidade, de hegemonia e institucional e se referem, em primeiro lugar, à sua função social: no momento em que uma cultura relativamente homogênea assumiu, no ocidente moderno, o papel da religião e revelou-se como novo cimento social a Universidade teve um grande momento. Esse sentido social foi ainda mais acentuado quando lhe coube participar do esforço de construção do estado-nação (mesmo que no interior desse estado, estivesse voltado para o fortalecimento de uma classe social em detrimento das demais). Na contemporaneidade que tende para a mundialização a universidade é secundária, na medida em que a cultura está despida desse seu papel anterior de portadora de uma idéia de nação e de fonte geradora de sentido para a vida e para o mundo
mostrando-se sobretudo como instrumento de lazer descompromissado e como simples mercadoria entre tantas outras; não detém mais o monopólio da produção do conhecimento e, nem sequer, da informação, e como a cultura não é mais passível de definição precisa, porque tudo é cultura, ela perdeu ao mesmo tempo parcela significativa de seu sentido social e educativo e só lhe cabe resignar-se à forma menor de uma escola, voltada para a preparação imediatista de mão de obra a ser burilada fora dela, mais tarde, pela empresa, quer dizer, pelo mercado. (Teixeira Coelho, 1998, p. 15)

CENÁRIO NACIONAL E ORGANISMOS INTERNACIONAIS

Tais questionamentos que vêm sendo veiculados em diferentes espaços de debate no Brasil e no exterior têm sido objeto de exame detalhado pelas grandes organismos internacionais. Estão nas discussões realizadas nos Estados Unidos, através da OCDE - Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos e na Europa, através da ERT - Mesa Redonda Européia dos Industriais. Estes organismos procuram definir o novo perfil da Universidade do Século XXI voltado a privilegiar as demandas ou as necessidades de mercado.
Há dez anos já se publicava um documento intitulado "Educação e Competência" na Europa onde se afirmava, de início, que
a educação e a formação são considerados investimentos estratégicos vitais para a vitória futura da empresa. E onde se deplora que o ensino e a formação sejam sempre considerados pelos governantes como um "affaire" interior onde a indústria não tem senão uma fraca influência sobre os programas de ensino. (Sélys, 1998, p. 14)
A conclusão do documento sugere que a industria e os estabelecimentos de ensino - notadamente graças à aprendizagem à distância - deveriam trabalhar em conjunto para o desenvolvimento de programas de ensino. O conjunto dessas novas estratégias, preparado pelos empresários, deverá desembocar em melhor adequação do ensino às exigências da indústria, numa preparação ao teletrabalho, numa redução dos custos de formação na empresa e, por fim, num processo de atomização dos estudantes e dos professores cujas eventuais turbulências são sempre duvidosas.
Em documento de 1991 afirma-se que uma Universidade Aberta é uma empresa industrial e o ensino superior à distância é uma indústria nova. Esta empresa deve vender seus produtos sob a modalidade do ensino continuado, que regem as leis de oferta e procura. Assim o alcance destes objetivos exige que a estrutura de educação seja concebida em função das necessidades dos clientes. Uma concorrência se instaurará entre as "prestadoras de serviços de aprendizagem" à distância o que pode segundo tais avaliações, desembocar em melhora da qualidade dos serviços (Sélys, 1998, p. 14). Destaca-se claramente os fins dos industriais: criar, à margem de serviço de ensino público reduzido a oferecer uma educação de base, um vasto sistema privado e comercial.
No limitado cenário nacional, a aderência a esse modelo é evidente.
Analisemos alguns pontos do capítulo "Da Educação Superior," presentes na nova Lei de Diretrizes e Bases - LDB de 1996. Este capítulo foi alvo de intensos e polêmicos debates no processo de sua elaboração. Assim, às concepções defendidas pelos professores e encontradas nos projetos originados na Câmara Federal se apunham àquelas defendidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e manifestas no projeto Darcy Ribeiro. As primeiras explicitam os objetivos da educação superior, sua abrangência, a duração de ano letivo, a oferta desse nível de ensino no período noturno, a autorização de funcionamento de instituições de ensino, segundo o Plano Nacional de Educação, a avaliação externa e, a cada cinco anos, o credenciamento de universidades, entre outros pontos. A nova LDB embora mantendo parte desses pontos alterou substancialmente outros, referentes principalmente a objetivos e finalidades, abrangência e programas, condição para autorização, credenciamento, processos de avaliação, etc (Muranaka & Minto, 1998, p. 66).
Assim, ao determinar as finalidades, o artigo 43, não reafirma o princípio da indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade. Tal tríade, a ser explicitada no artigo 52, embora garantida às universidades não é mais extensiva à formação em curso superior. Este ponto permite supor a distinção de qualidade entre cursos, instalando e impondo à educação a lógica de mercado ou seja, diante de um pressuposto aumento de pressão social por esse nível, planeja-se uma oferta diversificada, através de instituições que oferecem ensino de qualidade diferenciada, podendo redundar em cursos de 1ª, 2ª e 3ª categorias, de acordo com a possibilidade financeira do consumidor. Cumpre-se, assim, o duplo objetivo de atender à demanda e baratear os custos.
Tal proposta se articula num documento do Banco Mundial onde são definidas quatro orientações-chave para a reforma do ensino superior entre elas o desenvolvimento de instituições não universitárias cujos "custos mais baixos são atrativos para os estudantes e mais fáceis de serem estabelecidos por provedores privados (Banco Mundial, 1995, p. 5, citado por Muranaka & Minto, 1998, p. 67). Assim, além da ênfase privativista, percebe-se a inclinação para dar respostas mais de acordo com o mercado de trabalho.
Os efeitos dessas determinações, a longo prazo, poderão se refletir mesmo entre as Instituições de Ensino Superior consolidadas como Universidade, na medida em que poderão se desmembrar em núcleos de excelência partindo o conhecimento em especializações por campo de saber. A perseguição de um ideal especializante e profissionalizante é próprio da universidade deste período pós-moderno.

FATOS DA NOSSA HISTÓRIA

Muito do que se discute atualmente acerca da universidade poderia ser mais bem focalizado se considerássemos determinadas continuidades, por vezes deliberadamente ocultadas sob a capa das novidades ilusórias e das emergências do presente. Desde que o Relatório Atcon diagnosticou o estrangulamento no canal de acesso à universidade, a preocupação dos governos que se sucederam durante a ditadura militar foi a ampliação de vagas sem que isto representasse um investimento significativo. A partir daí é que se firmou a argumentação de que o ensino privado superior cumpriria uma função complementar, tendo em vista a impossibilidade de o poder público arcar completamente com este ônus. (Silva, 2000, p. 1)
A mentalidade organizacional começa a encontrar canais para se colocar no âmbito do sistema universitário e a ganhar o mesmo espaço já alcançado nos âmbitos do ensino de primeiro e segundo graus. A idéia era trazer a eficiência empresarial, já comprovada no ensino básico, para o ensino universitário e marcar, também neste nível,superioridade organizacional da empresa particular em relação à instituição pública. Lembremos que originalmente, o surgimento da universidade "não decorreu da existência de instituições de ensino fundamental ou básico mas constituiu sim, ao contrário, uma pré-condição para o surgimento das demais escolas" (Menezes, 1996, p. 9).
A proliferação de escolas privadas de ensino superior (o CFE deferiu 759 solicitações entre 1968 e 1972) permitiu o acesso de vastas camadas da classe média ao ensino universitário, atendendo assim a uma expectativa que se vinha tornando cada vez maior. Em segundo lugar, o caráter próprio destas organizações empresariais supunha naturalmente um perfil de curso superior significativamente distinto do que ocorria nas instituições públicas. Os parâmetros de eficiência e lucratividade excluíam qualquer ideário pedagógico mais consistente, o que foi substituído pelo senso de oportunidade comercial na organização e venda de serviços segundo o critério da demanda.
Este tipo de atitude compunha-se muito bem com o regime autoritário, que entendia a universidade como formadora de "recursos humanos" de acordo com a ideologia do desenvolvimento e segurança nacional. Desta forma a ditadura encontrou na expansão do ensino privado tanto um meio de se desonerar da responsabilidade educativa quanto um instrumento ideológico eficaz para a adaptação do alunado às regras de comportamento político (ou apolitico) vigentes. (Silva, 2000, p. 1)
Devemos estar atentos aos parâmetros de lucratividade, eficiência e suas decorrências quanto à qualidade de ensino. Do ponto de vista empresarial a manutenção da clientela é fundamental e nessa medida é fator decisivo para a definição de exigências acadêmicas. Tal situação
redundava num aumento visível do número de graduados em nível superior e isto também vinha ao encontro das expectativas do governo, na medida em que se constituía como uma maneira de alimentar com ilusões e falsas esperanças os anseios de ascensão da classe média. (Silva, 2000, p. 1)
A Universidade assim encaminhada, sem sua função transcendente torna-se uma "multiversidade," composta de partes que perseguem fins isolados. Na procura pela sua dimensão plural fingidamente aliada à perseguição do respeito à demanda diversa, deparamo-nos com sua fragmentação. Desprovida de uma função simbólica relevante e impossibilitada economicamente de assumir um papel de ponta na pesquisa científica, ela se esfacela (Teixeira Coelho, 1998).
A formulação de políticas está diretamente ligada à estrutura e natureza do Estado, e envolve em grande parte a representação de interesses que são por elas implementados ou bloqueados. As questões referentes a como os interesses são representados, de quem são esses interesses e qual a justificativa para representá-los expressam grande parte da reflexão sobre política.
O fato é que a noção de "interesse" ocupa um lugar central na teoria social moderna, na época da expansão e consolidação da sociedade burguesa. A noção aparece claramente vinculada a uma concepção individualista, "materialista", da sociedade: "interesse" é freqüentemente sinônimo de benefício material, algo que pode ser medido pela razão calculadora. É curioso observar que, em várias línguas latinas... a palavra interesse é sinônimo de juro ou de lucro, com o que fica marcada a vinculação do interesse com o ganho material imediato. E , mais do que isso, observa-se no pensamento moderno uma valorização do interesse (entendido como sinônimo de racionalidade) em relação à paixão. (Coutinho, 1989, p. 48)
De outro lado, as teorias sobre a construção do pensamento liberal mostram o Estado existindo com a finalidade de garantir interesses externos à sua alçada e se expressando pela seguinte lógica:
o Estado em si não representa interesses concretos;ele assegura que os interesses se explicitem em sua esfera própria, que é a esfera privada. Não é por acaso, portanto, que o pensamento liberal se centra no postulado da limitação do poder, em contraste com o pensamento democrático, que tem como eixo central a distribuição (ou socialização) do poder. A preocupação do liberalismo é limitar o poder; daí a exigência do Estado mínimo, do Estado que só intervém quando estritamente necessário. (Coutinho, 1989, p. 48)
"A solução não é suficiente para debelar o problema" (Paulo Leminski). A proposta de um novo caminho deve se voltar para a construção de uma ordem social mais justa e procurar delinear novas estratégias para a inserção social dos indivíduos. No entanto, a resposta que temos ouvido em relação à produção dessa cultura crítica, é aquela "que nos apresenta uma nação em plena fase de melhoramento técnico e de progresso social, onde há lugar para todos desde que trabalhem e cumpram assiduamente seus deveres na ocupação a que se destinam" (Bosi, 1992, p. 19). A mensagem é clara: uma exigência de produtividade na qual o trabalho, como um direito do cidadão, é colocado como mediador de identidades.
A discussão sobre as transformações do sistema educativo têm estabelecido um diálogo com a Sociedade a partir de um discurso apoiado na competência tecnológica, na urgência de renovação diante da imobilidade das instituições e no enxugamento da formação visando uma rápida aprendizagem para uma imediata aplicação na esfera do trabalho. Toda argumentação contrária tem recebido franca oposição, assentada na atribuição de retrocesso e falta de visão de futuro.

PROPOSTA ATUAL DE TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

A transformação do Ensino Superior proposta pelo atual governo através dessa nova legislação apóia-se em princípios educacionais que se traduzem por um modelo sustentado em dois pontos: Diretrizes Curriculares e Avaliação. De posse de um discurso que defende o livre acesso às instituições de ensino superior, a atenção à comunidade e a oferta diversificada de cursos para atingir diferentes demandas, esse modelo revela interesses voltados para a criação de ofertas de aprendizagens, como se esta não tivesse como pressuposto um modelo educacional. Encobertos os significados ficamos à mercê da retórica, do uso esvaziado das palavras.
Expressa, através desses pontos, um modelo assentado em princípios regulados por uma lógica (de mercado/de capital) onde à flexibilidade e autonomia conferidas às instituições corresponde uma avaliação estabelecida sobre padrões definidos e fixados previamente. À abertura que o conceito de flexibilidade parece oferecer corresponde um fechamento ou controle pela avaliação. O modelo atual supõe uma adaptação dos currículos às necessidades sociais das diferentes regiões do país. A flexibilidade deveria atender a essa exigência. Deparamo-nos, no entanto, com um certo deslizamento semântico por onde demanda social se identifica à demanda empresarial. Conceitos mal definidos como habilidade e competência começam a fazer parte do vocabulário acadêmico propondo, na verdade, uma profunda alteração da relação Educação/Trabalho supostamente a serviço de um ajuste necessário ao mundo globalizado. Em realidade, há uma verdadeira importação de conceitos e uma tradução de noções segundo significações estranhas à sua extração original. Assim sustentado, o modelo atende aos princípios que ancoram a política de ensino superior, voltada para a representação de interesses traduzidos pelo enxugamento do Estado, pela expansão ou acesso facilitado etc.
Todo o debate pela "ampliação das oportunidades educacionais e outros valores democráticos, da década de setenta, foram substituídos pelas idéias da nova direita, que traz para a educação os valores e as exigências do mercado" (Dias Sobrinho, 1996, p. 145): o estabelecimento das instituições privadas, a competição, a produtividade, a excelência, os interesses do consumidor, enfim, "a cultura da empresa."
Estas mudanças manifestam a presença de duas lógicas institucionais. Desvaloriza-se a lógica universitária naquilo que ela não coincide com a lógica empresarial. O problema então diz respeito à definição do produto da Universidade e do processo de produção, se quisermos usar uma metáfora economicista. O perigo do quantitativismo (o que se produz, em quanto tempo e quanto custa) nos conduz a confundir uma organização de trabalho intensiva como é a universidade a uma organização de capital-intensiva como tendem a ser as empresas (Santos, 1995, p. 218). A presença da lógica empresarial pode ser sentida também na criação das fundações nas universidades. "Como verdadeiras organizações paralelas, essas fundações de direito privado passaram a usar os recursos humanos, instalações, os laboratórios e os campos de cultivo para vender serviços e produtos no mercado, como se fossem empresas privadas" (Cunha, 1998, p. 12). Essas fundações mantém o controle de departamentos, instalações e não contribuem para a formação. Funcionam com um modus operandi das empresas defendido por aqueles que desejam a privatização das instituições públicas.
O cenário atual evidencia,portanto, mudanças radicais. Estas se manifestam, da preocupação com o ensino à distância à redefinição do sentido de Universidade; dos problemas ligados à privatização x globalização, à preocupação com a determinação dos currículos voltados para as necessidades de formação de mão de obra a ser utilizada pelo mercado. Os estabelecimentos de ensino são convocados a se converter em empresas. Os estudantes tornam-se clientes.
Observa-se, no cenário contemporâneo, uma preocupação com os processos avaliativos referentes à formação em nível superior. Neste contexto a avaliação tem sido utilizada como referência para classificar as instituições, como indicador para a concessão de benefícios e como parâmetro para a manutenção do funcionamento das instituições de ensino superior. Assim, a implantação de políticas públicas para o ensino superior supõe, como estratégia fundamental, a instalação de um sistema de avaliação.
Avaliação é necessária e faz parte do processo formativo. Ela se produz e se efetiva num espaço social de valores. Não é neutra.
Por ser valorativa todos os questionamentos que ela suscita não dizem respeito a aspectos técnicos embora assim o pareça, mas se referem a concepções sobre Sociedade e Educação Superior. Como decorrência, não há uma concepção única de Avaliação Institucional porque são muitas e contraditórias as concepções sobre Educação, Sociedade e Universidade ... Os principais equívocos do sistema de avaliação são principalmente de ordem política e pedagógica e, sendo pedagógica é também por isso mesmo, política e ética. (Dias Sobrinho, 1996, p. 185)
Qualquer reflexão sobre Avaliação, no entanto, supõe uma distinção inicial entre o que é medir e o que é avaliar. Medir é uma parte de um processo muito mais amplo. Um procedimento isolado não é um programa formativo e portanto o Exame Nacional de Cursos, um dos procedimentos do Sistema de Avaliação do Ensino Superior, não o é também. Ele se sustenta em algumas suposições assentadas numa proposta mecanicista de ensino. Simplifica os currículos quando os retira da complexidade da prática de ensino/aprendizado na relação professor-aluno. Estes passam a ser definidos por conteúdos pretensamente neutros. O que importa é o Resultado. Não há avaliação do conhecimento.Reduz-se a formação à aquisição de elementos simples, próprios a serem medidos. Do ponto de vista técnico; estabelece uma relação causal entre o bom desempenho numa prova e o futuro desempenho profissional. O que pode haver, unicamente, é a relação estatística. No que se refere à cidadania ativa e crítica, a tecnificação da formação abafa a consciência de nacionalidade e contribui para a desintegração da sociedade.
O que se pretende? O que se mede então? Produtos da Aprendizagem. Quais? Aqueles escolhidos como padrão de qualidade. Atrelado a um pensamento tecnológico, o discurso sobre avaliação, embora procure se sustentar a partir de argumentos apoiados na melhoria do ensino, que se revelaria como melhoria nos "futuros serviços," adere a uma alta rigidez, oposta à flexibilização anunciada: os fins são fixados (o que é bom e o que é mau); procura-se desenvolver um aprimoramento dos meios para atingi-los.
Numa sociedade com valores estreitamente expressos pela modernização como diretamente decorrente de progresso técnico, cabe à Avaliação medir o desempenho/êxito ou fracasso nos resultados obtidos. Há flexibilização dos meios, mas com posterior controle ou uma nova regulação dos resultados por parte do Estado, com todos os riscos de burocratização que isso acarreta (Dias Sobrinho, 1996).
Supõe-se então que a Educação deva ser definida por políticas apoiadas num aparato técnico supostamente neutro e acima da política, e que expresse sua fidedignidade na operação de instrumentos, único critério para sua credibilidade. Prescinde de um programa com princípios, objetivos e ações que, de forma articulada e combinando distintos procedimentos, pudesse vir a contribuir para a melhoria da qualidade do ensino e a transformação da Educação no país. O modelo proposto sugere uma neutralidade que elimina o agente da avaliação. Dessa forma, "O avaliador já não será o docente. O professor perde a imagem integrada de sua profissão para converter-se em um operário a mais na linha de produção educativa" (Dias Sobrinho, 1996, p. 163).
Neutraliza-se o sujeito da ação. Assim a avaliação é um instrumento a serviço do reforçamento de valores, atrelados a políticas encadeadas por grandes organismos internacionais, cujas propostas para a Educação têm, portanto, na Avaliação uma estratégia privilegiada para a sua implantação.
Perguntemo-nos: Qual avaliação? Que Universidade? Para quem? Para qual sociedade? Para que? Que tipo de profissional e para qual mundo?
Os grandes problemas estão no campo dos valores políticos e filosóficos. Não dizem respeito a questões formais sobre organização e gerenciamento das Instituições Educativas.
Assim colocado, reconhecemos no sistema atual a contradição sobre a qual nos referimos anteriormente, entre o princípio de igualdade de oportunidades e de mobilidade social através da escola e a continuação, a consolidação e até o aprofundamento das desigualdades sociais.
Neste cenário e considerando a implementação das novas diretrizes curriculares para os cursos, estabelece-se um ambiente propício para que, extrapolando a esfera governamental de avaliação, se defina ou venha a se construir um outro caminho, numa perspectiva que seja processual, contínua e que tenha como meta principal a melhoria da qualidade da formação. Para que este objetivo seja alcançado, torna-se indispensável o aperfeiçoamento e a construção de indicadores de avaliação que reflitam o processo de formação dos graduandos e que, ao mesmo tempo, subsidiem o aperfeiçoamento deste processo formativo. Cumpre desenvolver um modelo de avaliação que tenha o foco não apenas nos resultados aferidos a partir dos egressos dos cursos mas que considere, sobretudo, o processo de formação, que supõe apoio noutros princípios.
Temos clareza que a discussão sobre construção de modelos requer a atenção sobre a dicotomia Educação-Trabalho. Trabalho e Mercado estão neste período pós-moderno intrinsecamente envolvidos. Neste cenário, a questão mais urgente nos remete à complexidade das relações estabelecidas entre os problemas políticos, éticos, culturais e psicológicos que estão na base da sustentação de programas em Educação e envolvem o eixo fundamental da formulação das políticas públicas nessa área. Com base nas conexões estabelecidas entre esses fatores pode-se pensar nas questões específicas envolvidas na produção desse novo modelo.
Temos visto neste século que o trabalho assentou-se sobre a universalização das relações de troca e sobre a sua própria transformação em força de trabalho. Reconhecemos o abismo entre o que se descreve como valor de uso e valor de troca. O trabalho ocupa um lugar especial na vida mental dos indivíduos. Nossa atenção se volta para a compreensão deste tema no conjunto das reflexões deste trabalho, na medida em que uma análise sobre as transformações no âmbito do trabalho no mundo atual exibe, por um lado, as novas exigências que estão sendo feitas aos sujeitos em suas relações cotidianas e, como conseqüência, evidencia, por outro lado, os efeitos de subjetivação decorrentes.
Fazendo triunfar a Razão Instrumental o futuro trabalhador não pode se expressar a não ser sob duas "modalidades: enquanto indivíduo competitivo ..., ou enquanto pessoa manipulável e sujeita a trabalho forçado" (Enriquez, 1995, p. 10). Essa estranha articulação carrega como efeito, a emergência da quantificação/matematização como regulador social e dessa forma a "economia" inicia seu reinado.
Esse ideário racional ocidental constitui-se na realidade como o efeito perverso do esforço pela matematização, como se dela pudesse advir um maior controle sobre o meio, com a conseqüente possibilidade de um maior grau de certeza nas decisões a se tomar.
Ilusão de controle ou erro dos homens, esse esforço instala valores que privilegiam a racionalidade dos meios em relação aos fins pretendidos e que se traduzem pelo cálculo custo x benefício. Dessa forma, os valores democráticos são aqui rapidamente esfacelados.
Os efeitos dessa equação custo x benefício, portanto, podem ser aberrantes: ocultando-se a referência social e ética, um meio técnica e economicamente válido, pode ser moral ou socialmente inaceitável (Enriquez, 1995, p. 11).
Razão ensandecida e violenta a cultivar o "progresso econômico," produz um imaginário social de competitividade, de luta individual para acesso aos bens produzidos, em que o indivíduo "livre" jamais põe em discussão a lógica do desenvolvimento capitalista.
Nossa constelação ideológico-cultural de fim de século exige uma nova luta: o reconhecimento dos lugares em que as tecnologias dissimulam os senhores perversos aos quais elas servem. Em nome do progresso e do crescimento social, essas tecnologias referendam valores que se contradizem. Assim, aquilo que serve aos interesses é incorporado ao discurso e à prática. A "importação" entre os modelos não respeita fronteiras. Ela define os "raptos ideológicos" (Patto, 1987, p. 92), que introduzem uma falsa história no lugar da verdadeira e instalam assim obstáculos ao conhecimento do campo teórico-prático e ao reconhecimento dos sujeitos nas suas relações cotidianas. (Fernandes, 1999, p. 46)
Segundo Fernandes (1996) "A luta é contra essa cultura da violência que surrupia o quanto pode da sensibilidade e imaginação e nos deixa atrelados à coisa, à posse do benefício, à prevalência do imediato" (p. 75). Só assim, nesta luta, a Universidade poderá garantir as mais preciosas funções que pode exercer enquanto diagnóstico social e discussão sobre a proposição de políticas públicas. Cabe a ela resistir à submissão a um regime de ajuste a políticas pré-fabricadas.
Devemos operar uma contínua vigilância sobre essas ações para assegurar a ampliação do político, a capacidade de discriminação entre as várias formas de poder e uma contínua reflexão centrada na promoção da criatividade da ação individual e coletiva.


Fernandes, M. I. A. (2001). Abandonment of the Institutions: the Development of Public Policies and the University. Psicologia USP, 12 (2), 11-28.
This paper discuss the on-going proposal to restructure the Brazilian Higher Education System as a consequence of the modification of the law (LDB) in 1996. It focuses on three basic issues, as follows: the recent history concerning the formulation of public policies in the educational area and the implications of a lack of discrimination between Higher Education and University; the definition of the guidelines for Higher Education determined by international organisms which have private interests over the current formation of professionals; and the identification of the principles that sustain the model which supports this change, meaning the Curricular General Orientations for the undergraduate courses and the consolidation of a evaluation system for Higher Education.

REFERÊNCIAS

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Teixeira Coelho (1998). Jornal da USP, São Paulo.






sábado, 2 de novembro de 2013

RELAÇÕES DE PODER NO INTERIOR DO CAMPO UNIVERSITÁRIO E AS LICENCIATURAS

Blog História do Ensino Superior Brasileiro, de autoria de Álaze Gabriel.



Autoria:

Júlio Emílio Diniz Pereira. Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais



RESUMO


O objetivo deste artigo é buscar subsídios para uma melhor compreensão da situação atual de menor status acadêmico das licenciaturas nas universidades brasileiras e das conseqüentes dificuldades enfrentadas por esses cursos para implementação de mudanças significativas. São analisados resultados de uma investigação sócio-histórica realizada no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. A história desse campo, utilizada neste trabalho como um estudo de caso, revela pontos que poderão contribuir para um melhor entendimento dessa condição de menor prestígio acadêmico dos cursos de formação docente nas instituições de ensino superior brasileiras.


INTRODUÇÃO


O objetivo deste artigo é buscar subsídios para uma melhor compreensão da situação atual de menor status acadêmico das licenciaturas nas universidades brasileiras e das conseqüentes dificuldades enfrentadas por esses cursos para implementação de mudanças significativas. Para tal, por meio da análise dos conflitos de natureza simbólica decorrentes de interesses em oposição no campo acadêmico, serão apresentados os resultados de uma investigação sócio-histórica realizada no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

campo acadêmico, ou campo universitário, como outros campos simbólicos, é um campo de luta onde se opõem interesses de ordem simbólica. Segundo Bourdieu (1990, p.116), "a universidade também é o lugar de uma luta para saber quem, no interior desse universo socialmente mandatário para dizer a verdade sobre o mundo social (e sobre o mundo físico), está realmente (ou particularmente) fundamentado para dizer a verdade".

O conceito de campo refere-se aos diferentes espaços sociais que possuem objetos de disputas e interesses específicos e por isso mesmo são irredutíveis aos objetos de lutas e aos interesses próprios de outros campos. Todavia, há leis gerais que regem os diferentes campos, ou seja, existem homologias estruturais e funcionais entre todos os campos. Sendo assim, "campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis de funcionamento invariantes" (Bourdieu, 1983a, p. 89).

A estrutura de um campo "é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico1 que, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores" (Bourdieu, 1983a, p. 90). De uma maneira geral, todos os campos se estruturam a partir de relações de aliança e/ou conflito entre os seus diferentes agentes que lutam pela posse de determinadas formas específicas de capital. As hierarquias no interior de cada um desses campos se estabelecem pela maior ou menor detenção, por parte dos agentes, dessas formas específicas de capital.

Nos campos de produção de bens simbólicos e culturais a forma específica do capital que move as lutas no interior do campo é o capital simbólico expresso em formas de reconhecimento, legitimidade e consagração, institucionalizadas ou não, que os diferentes agentes ou instituições conseguiram acumular no decorrer das lutas no interior do campo (Bourdieu, 1990).

O funcionamento de um campo depende da existência de "objetos de disputas e de pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus2 que impliquem o conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputa, etc." (Bourdieu, 1983a, p. 89).

O universo da ciência está submetido às mesmas leis gerais da teoria dos campos e, ao mesmo tempo, assume formas específicas no interior desse campo. O campo científico

...é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. (Bourdieu, 1983, p. 122-23)

De acordo com o mesmo autor, "o universo `puro' da mais `pura' ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas específicas" (Bourdieu, 1983, p.122).

A história do campo das Ciências Biológicas na UFMG, utilizada neste trabalho como um estudo de caso3, revela pontos significativos que poderão contribuir para um melhor entendimento da atual situação de menor status acadêmico dos cursos de formação docente nas universidades brasileiras. Essa história inicia-se no final da década de 30 com a criação da Faculdade de Filosofia que abrigou, entre outros, o curso de História Natural, responsável pela formação de professores de Biologia e de pesquisadores na área biológica.


A EMERGÊNCIA DO CAMPO DAS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS NA UFMG


Inspirado no modelo original da Universidade de São Paulo – USP –, o grupo de fundadores da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais – FFMG – tinha como ideal estabelecer em Belo Horizonte um espaço onde não houvesse uma preocupação restrita com o preparo para uma determinada profissão. Um lugar em que fosse possível pensar em temas de natureza mais geral, menos comprometido com uma aplicação imediata, com uma finalidade prática.

Esse espírito descomprometido dos fundadores da Faculdade de Filosofia pode ser verificado em um artigo publicado no primeiro número da Revista Kriterion, o periódico da faculdade lançado em 1947, em que a concepção fundamental da instituição e seus objetivos não se limitavam à formação de professores para o ensino secundário e normal:

Não sendo uma Faculdade puramente profissional como as demais, e tendo em vista principalmente realizar pesquisas desinteressadas nos vários domínios das ciências, das letras, da filosofia e da arte, isto é, nos vários domínios da alta cultura, da cultura desinteressada e integral, sem objetivos práticos, imediatistas, precisamente por isso a Faculdade de Filosofia prepara melhor do que nenhuma outra, o chamado trabalhador intelectual, técnico ou não. O que a Faculdade de Filosofia visa formar antes de tudo é o pesquisador, o cientista, o estudioso, o letrado, isto é, o homem que faz avançar a ciência e não somente o homem que repete a ciência feita pelos outros. Assim, no que toca ao professorado, por exemplo, a Faculdade de Filosofia quer formar professores que ensinem o que sabem e não o que acabam de ler.

De maneira semelhante ao ocorrido no restante do país, houve, na prática, desde a criação da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, o predomínio de interesses utilitários sobre os ideais culturais que guiavam muitos daqueles que lutaram pela implantação de uma universidade que não se limitasse à formação de profissionais liberais. A faculdade cedeu a esses interesses utilitários quando percebeu que, logo após sua criação, a baixíssima demanda de seus cursos poderia comprometer o seu funcionamento. O texto do edital de convocação para exames vestibulares da época, endereçado aos estudantes dos colégios secundários da capital, esclarecia a utilidade de seus cursos:

Os diplomas que se obtêm na Faculdade de Filosofia serão exigidos, a partir de 1º de janeiro de 1943, para o preenchimento de qualquer cargo ou função do magistério secundário e normal e para o desempenho de outros cargos ou funções públicas que serão fixadas em leis especiais. (apud Haddad, 1988, p. 124-5)

Dessa forma, a Faculdade de Filosofia de Minas Gerais estava destinada, fundamentalmente, à formação do professor secundário. A pesquisa, apesar de ser uma atividade muito desejada, era bastante incipiente.

Essa faculdade possuía uma estrutura complexa com feições de uma microuniversidade, onde cinco seções (Filosofia, Ciências, Letras, Pedagogia e Didática) coexistiam no mesmo espaço, colocando em contato estudantes com interesses diversos, possibilitando uma convivência diversificada e rica intelectualmente. Era responsável pela realização de 11 cursos ordinários, ministrados nas seções de Letras, Filosofia, Ciências e Pedagogia, com três anos de duração, que conferiam aos alunos o diploma de bacharel e um especial (curso de Didática). A seção de Didática, responsável por um curso de mesmo nome, realizado em apenas um ano, conferia o grau de licenciado ao formando na área específica do curso de bacharelado. Como se sabe, essa estrutura ficou conhecida com o nome de "esquema três mais um".

Os depoimentos coletados nessa investigação confirmam a falta de prestígio acadêmico da licenciatura, o que parece ser algo tão antigo quanto a própria origem do curso. Segundo a fala de uma das entrevistadas, os estudantes da Faculdade de Filosofia consideravam-se formados no final do terceiro ano, quando recebiam o diploma de bacharel. A licenciatura, apesar de ser o curso que dava uma perspectiva profissional para esses alunos, não passava de um apêndice do curso de bacharelado.

A gente recebia no fim do terceiro ano o diploma de bacharel, quer dizer todo mundo se formava bacharel no terceiro ano e depois fazia mais um ano para se formar licenciado. Então tínhamos dois diplomas, como eu tenho, diploma de bacharel e diploma de licenciado. A gente considerava que a formatura era no terceiro ano, depois a gente fazia mais um ano de Licenciatura, que era uma espécie de apêndice do curso. Mas, apesar disso, jamais passou pela cabeça de ninguém, eu acho, em nenhum dos cursos, que você tinha alguma coisa para fazer com esse bacharelado, que esse bacharelado lhe levasse para alguma coisa. Era uma coisa um pouco assim burocrática, convencional, tradicional, que no terceiro ano você se formava como bacharel, mas era tranqüilo que você só se formava mesmo profissionalmente com mais um ano. Mas a formatura era feita no terceiro ano. (risos). (Magda Becker Soares, entrevista em 18 de maio de 1995)

A Faculdade de Filosofia funcionava sob o regime da cátedra. Segundo Haddad (1988), a maioria dos professores era composta de profissionais liberais formados pelos cursos tradicionais da época, predominando bacharéis em Direito, engenheiros, médicos e farmacêuticos. O restante do quadro era composto por professores estrangeiros, padres e pessoas que não tinham curso superior mas atuavam com destaque na vida cultural de Belo Horizonte, como escritores, jornalistas e professores secundários. É importante ressaltar que as quatro únicas mulheres catedráticas da faculdade, diplomadas em Escola Normal e com cursos de especialização, regiam cadeiras nas seções de Pedagogia e Didática.

É necessário frisar também que a Faculdade de Filosofia possibilitou o acesso de um número maior de mulheres ao ensino de 3º grau. Mais da metade dos formados nessa Faculdade, entre 1943/1955, era do sexo feminino.

Um grande número de mulheres encontrou assim uma possibilidade de estudar em curso superior. Os pais, às vezes, não deixavam as filhas entrarem nas escolas superiores de formação profissional tradicional, porque era um local para homens. Papai sempre foi muito aberto em relação à educação, de modo que ele me liberou... Eu, por exemplo, quando fui para a Escola, era a única mulher do curso de Engenharia. (Beatriz Gonçalves de Alvarenga, entrevista em 2 de junho de 1995)

Nessa época, o ensino e a formação para o magistério em nível superior "era, para a condição feminina, a alternativa possível, ou melhor, a mais rentável, para uma carreira de nível superior e a satisfação de ambições intelectuais" (Garcia, 1994, p. 78, destaque da autora).

Por estar ligada à formação de professores, atividade pouco valorizada socialmente, por abrir espaços para o ingresso de mulheres no seu corpo discente e docente e pelo fato de a pesquisa não ser uma atividade ainda bastante difundida, a faculdade de filosofia gozava de pouco prestígio em relação às escolas tradicionais.

Todas as escolas que não correspondiam à tradição universitária brasileira, ou seja, que saíam fora do padrão tradicional, das três grandes profissões, Engenharia, Medicina e Direito, eram consideradas como profissões de segunda categoria. Conseqüentemente as escolas que ministravam os respectivos ensinos não eram consideradas na distribuição do orçamento da universidade; normalmente a maior parte da União ficava com essas três grandes faculdades, as outras ficavam com o que sobrasse. (Márcio Quintão Moreno, entrevista em 2 de junho de 1995)

Além disso, a pesquisa realizada por Garcia (1994) constata que a Didática4, na Faculdade de Filosofia, ocupava um lugar desprestigiado e desvalorizado diante das outras seções que se responsabilizavam pelas disciplinas de conteúdo científico, "mais preocupadas em desenvolver as atitudes de pesquisa e experimentação nos seus respectivos campos do saber".

Segundo a autora, alguns fatores "contribuíram para a posição inferior que ocupou esse campo na hierarquia de saberes que constituíam as Faculdades de Filosofia": a natureza do conteúdo de Didática, que tinha "no seu horizonte imediato a profissionalização do magistério secundário", o fato de a maior parte do corpo docente das disciplinas pedagógicas ser formado por mulheres e, finalmente, o menor capital social e escolar dos/as primeiros/as catedráticos/as e professores/as que ocuparam as cadeiras da seção de Didática5 (Garcia, 1994, p. 117-9). Nas suas palavras,

Esse conjunto de atributos conferiram a esses professores um capital simbólico menor face aos professores das outras seções da Faculdade de Filosofia, quase na sua totalidade, portadores de diplomas de nível superior, obtidos nas tradicionais escolas de preparo para o exercício das profissões liberais. (Idem, p. 119).

A autora acrescenta que:


...as disciplinas pedagógicas pelo fato de serem diretamente responsáveis pela aproximação com o campo profissional representavam um capitus diminutio para os "filósofos" que tinham no seu horizonte o pesquisador e não o papel de professor secundário. (Idem, ibidem)


Na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, a falta de uma formação adequada do corpo docente para a investigação científica, a precariedade das instalações físicas, a falta de recursos e o fato de os professores trabalharem em regime de tempo parcial, praticamente, inviabilizavam a realização da atividade científica. Além disso, o mercado de trabalho oferecia maiores oportunidades para o magistério do que para a pesquisa.

Segundo Haddad (1988, p.139), nessa faculdade, a área que mais cedo teve condições de se equipar para a concretização dos objetivos ligados à formação de pesquisadores foi a de História Natural. O pioneirismo da História Natural no desenvolvimento da atividade científica fez com que esse curso se diferenciasse dos demais cursos da faculdade, apresentando particularidades na formação de professores e pesquisadores da área biológica.

O curso de História Natural, instalado na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais em 1942, tinha originalmente o mesmo ideal do curso da USP, porém não possuía os mesmos recursos humanos e financeiros. Segundo os depoimentos, não estava claro para alunos e professores de História Natural qual era a finalidade desse curso na faculdade e que profissional se pretendia formar.

Alguns afirmaram que apesar da existência de dois diplomas, o de bacharel e o de licenciado, o curso estava fundamentalmente voltado para a formação de professores para o ensino secundário. Essa necessidade parecia evidente, uma vez que tal atividade era exercida por outros profissionais, principalmente da área médica, sem uma formação específica para o magistério.

Sendo assim, não havendo uma perspectiva profissional, nem uma definição clara a respeito do papel do bacharel em História Natural, esse curso tinha como produto final o professor, uma vez que a maioria dos alunos dirigia-se, ao final do terceiro ano, para a licenciatura. A intenção de formar o pesquisador existia na cabeça de alguns professores e era a pretensão da maioria dos alunos do curso de História Natural, porém não lhes eram dadas condições para tal formação. Além disso, as oportunidades de trabalho em pesquisa eram bastante restritas.

A presença e a atuação política do professor Braz Pellegrino na Faculdade de Filosofia, diretor no período de 1946 a 1948, foram essenciais para a criação e o reconhecimento oficial do curso de História Natural, bem como para o desenvolvimento da investigação científica nesse campo.

Em maio de 1946, o professor José Pellegrino, filho do professor Braz Pellegrino, foi indicado como assistente da cadeira de Biologia Geral do curso de História Natural e, no ano seguinte, em dezembro de 1947, o professor Giorgio Schreiber foi contratado, em regime integral, como interino de Zoologia (2ª cadeira). Ambos apresentavam um currículo bastante diferenciado dos currículos dos demais docentes da Faculdade de Filosofia, podendo ser considerados autênticos pesquisadores6.

O professor Giorgio Schreiber, pesquisador italiano, era o único com o título de doutor em todo o curso e também o único com formação em História Natural. Veio para o Brasil em 1940, fugindo das perseguições fascistas na Europa. Ao ser convidado pelo professor Braz Pellegrino para compor o corpo docente do curso de História Natural da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, Schreiber exigiu algumas condições: contrato em tempo integral, sala para realizar seus trabalhos, assistente em tempo integral, aquisição de uma lista de livros, assinatura de revistas e uma cátedra.

O professor Schreiber, por ter sido formado na prática de pesquisa, foi o primeiro orientador de novos pesquisadores no curso de História Natural. "Seu método de trabalho influenciou a prática pedagógica do departamento, reforçando-a e adequando-a, para a construção do habitus de pesquisa" (Paixão, 1994, p.17). Schreiber incentivava os alunos a acompanhar, pelos periódicos especializados, a produção científica no Brasil e no mundo, a participar de reuniões científicas e a empenhar-se em atividades de pesquisa.

Os alunos que estavam perto dele vivenciavam essa atmosfera da busca do conhecimento, não só da transmissão do conhecimento que era a tônica da Faculdade de Filosofia. O Schreiber mostrava o lado do conhecimento, do surgimento, o crescer do conhecimento e da aquisição do conhecimento. Então trabalhar com ele dava esse sentimento. Serviu muito de exemplo para todos nós, pois era uma pessoa que sabia descobrir as coisas. Ele fazia uma ação baseada numa reflexão, fazia uma reflexão baseada na ação, então, isso aí para os estudantes foi uma oportunidade ímpar. (Humberto Coelho de Carvalho, entrevista em 23 de janeiro de 1995)

Segundo Paixão (1994), a associação dos professores Braz Pellegrino e Giorgio Schreiber foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa biológica na FFMG. Apesar de estarem, politicamente, em campos opostos7, academicamente estavam comprometidos com a construção de uma "universidade moderna".

O professor José Pellegrino, formado em Medicina, tornou-se pesquisador reconhecido por seus trabalhos em biologia parasitária. Sua contratação contribuiu para incrementar a formação científica dos alunos do curso de História Natural. Apesar de não ter sido um grande "mestre", como o professor Schreiber, José Pellegrino teve importância na formação de uma nova geração de pesquisadores.

Pode-se dizer, então, que o surgimento da pesquisa no curso de História Natural está associado à entrada desses dois novos professores em seu quadro docente. As contratações desses pesquisadores possibilitaram o desenvolvimento de linhas de investigação no curso. De acordo com Haddad,

...o grande número de pesquisas realizadas, intensa participação em Congressos científicos e inúmeras publicações de grande projeção na área são indicadores de sua atividade de pesquisador dedicado também ao ensino. Como conseqüência da presença de professores bem preparados para atividades científicas, tendo inclusive o privilégio de contar com um professor em regime integral, o curso de História Natural conseguiu, mais cedo, resultados positivos na vinculação ensino e pesquisa. (1988, p. 140-41)

Ainda em 1947, o esforço conjunto do catedrático de Biologia Geral Braz Pellegrino, de seu assistente José Pellegrino e do professor interino da 2ª cadeira de Zoologia Giorgio Schreiber já lançaria as bases para a criação do "Instituto de Biologia e de Pesquisas Correlatas" da Faculdade de Filosofia, um importante passo em direção à consolidação da prática de pesquisa no curso de História Natural.

Segundo palavras do próprio professor Braz Pellegrino,

...procurou o Instituto de Biologia ser, acima de tudo, uma manifestação viva e genuína daquele espírito universitário sempre invocado mas cada vez mais afugentado do meio assim chamado universitário (...) Um instituto é, antes de tudo, uma unidade de pesquisa assim como uma cadeira é essencialmente uma unidade didática. Esta divisão poderia, em tese, parecer imprópria, pois não se exclui, antes se exige que em qualquer cadeira possa e deva haver pesquisa. (Ofício enviado ao Magnífico Reitor da Universidade de Minas Gerais, professor Lincoln Prates, em 23/11/1957)

Uma manobra do catedrático de Biologia Geral fez incluir no primeiro Regimento Interno da FFMG a previsão da criação de um laboratório de biologia orientado e dirigido pelo próprio professor. "Essa previsão regimental, atribuindo possibilidades para a criação de laboratórios ligados às cadeiras de ciências, possibilitou com mais agilidade, a criação do Instituto de Biologia" (Haddad, 1988, p. 140).

Apesar de receber referência especial no Anuário da Faculdade de Filosofia (1939-1953) e no Guia da Faculdade (1953), não havia um estatuto ou regimento interno específico que legalizasse a existência do Instituto de Biologia. Segundo justificativa do professor Braz, "o bom senso e a grande vontade de realizar, de servir à causa da Universidade organizaram sua forma de vida interna e ditaram suas normas de conduta" (Ofício enviado ao Magnífico Reitor da Universidade de Minas Gerais, professor Lincoln Prates, em 23/11/1957).

A criação do Instituto de Biologia foi na verdade uma estratégia8 que tornou possível a concentração de recursos materiais e humanos das duas cátedras diferentes, Biologia Geral e Zoologia (2ª cadeira), em torno de um objetivo comum, privilegiar um trabalho visando ao fomento à pesquisa.

Segundo o depoimento de um dos entrevistados, esses professores dividiam as parcas verbas e assim compravam material, davam bolsas, jogavam com o dinheiro (...). Então eles conseguiam várias coisas que os outros não conseguiam. Para comprar um aparelho caro, somavam-se os dois e adquiriam o equipamento. Então assim eles conseguiram sobreviver. Em média as disciplinas da Biologia Geral e da Zoologia eram melhores... porque tinham mais condições, eram aulas mais modernas, em termos de biologia mais avançadas e isso por causa da pesquisa que estava lá... então eles captavam recursos mais fácil e eles distribuíam ali as bénéfices... (Humberto Coelho de Carvalho, entrevista em 23 de janeiro de 1995)

Os dizeres do próprio professor Braz Pellegrino confirmam o depoimento anterior.

Escassos nos princípios, praticamente nulos em seguida, foram melhorando com a simbiose realizada entre as cadeiras de Biologia Geral e Zoologia II. Vis unita fortior! As verbas das duas cadeiras possibilitaram a aquisição de material indispensável para o trabalho. (Ofício enviado ao Magnífico Reitor da Universidade de Minas Gerais, professor Lincoln Prates, em 23/11/1957)

Os resultados dessa simbiose foram sentidos logo nos primeiros anos de funcionamento do Instituto de Biologia. Os relatórios correspondentes aos exercícios financeiros e à prestação de contas da Faculdade de Filosofia são a prova do sucesso desse empreendimento. Por exemplo, no biênio 1948-1949, a rubrica "despesas referentes à seção de ciências naturais" mostra que os gastos de materiais de laboratório foram todos para o Instituto de Biologia, não havendo referências às outras matérias do curso nem às cadeiras de Física e Química. No ano seguinte, ou seja, em 1950, praticamente a metade da verba patrimonial da faculdade foi destinada ao instituto.

Usando de seu crescente prestígio no campo acadêmico da Faculdade de Filosofia, o Instituto de Biologia obteve, por meio da "compreensão da Administração da Faculdade e da solidariedade da Congregação", uma verba anual própria para atender a algumas despesas extraordinárias. Além disso, passou a receber recorrentemente auxílio financeiro da Fundação Rockefeller, o que representava um grande estímulo às pretensões desse grupo.

Apesar dos privilégios conquistados dentro da Faculdade de Filosofia, o Instituto de Biologia sonhava com sua autonomia para o desenvolvimento da pesquisa pura na área biológica. Em ofício enviado ao reitor da Universidade de Minas Gerais, o professor Braz Pellegrino escreve:

A única solução que se nos afigura justa e viável é a de colocar-se o instituto em situação eqüidistante de faculdades às quais poderia servir, e ligado diretamente à reitoria como unidade neutra a serviço do ensino e da pesquisa. (Ofício enviado ao Magnífico Reitor da Universidade de Minas Gerais, professor Lincoln Prates, em 23/11/1957)

As diferentes concepções a respeito dos objetivos daquela instituição acabaram por dividir os grupos, determinando assim a própria divisão do espaço na Faculdade de Filosofia. O Instituto de Biologia já prenunciava a especificidade de um grupo que se direcionava para a atividade de pesquisa e se preparava para tornar hegemônico, a partir da Reforma Universitária de 1968.


A REFORMA UNIVERSITÁRIA E A CONSOLIDAÇÃO DAS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS NA UFMG


Como se sabe, é a partir da n. Lei 5.540/68, mais conhecida como Lei da Reforma Universitária, que os cursos de licenciatura sofrem uma grande transformação, uma vez que ela retira das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras a responsabilidade total pela formação do licenciado. Além disso, todas as demais propostas da Reforma Universitária deixam sua marca na nova configuração da licenciatura.

Essa lei, ao estabelecer o princípio da indissociabilidade ensino/pesquisa, propõe a pesquisa como elemento associado, em igualdade de condições, à atividade de ensino. Observa-se, a partir desse momento, o reconhecimento e fortalecimento institucional da prática de pesquisa nas universidades.

Segundo Paixão (1994, p. 1), "a reorganização da Universidade proposta pela reforma foi objeto de disputa, opondo interesses acadêmicos hegemônicos e interesses acadêmicos emergentes, que procuravam impor-se". O modelo organizacional da universidade moderna proposto pela Reforma respondeu aos interesses de ordem acadêmica do grupo específico ligado à pesquisa. A ele se opunha o grupo, que se identificava com a formação profissional e, conseqüentemente, com o ensino da graduação.

Observam-se, a partir daí, uma reorganização das relações de poder no campo universitário brasileiro e uma nova orientação na distribuição de capital específico desse campo. A pesquisa passa a ser a principal atividade acadêmica e os méritos dela advindos são acumulados na forma de capital científico. Os principais indicadores de posse desse tipo de capital são as publicações, em especial as internacionais, as apresentações de trabalho em congressos científicos, as orientações de teses e dissertações e o reconhecimento de seus pares-concorrentes, outros membros da comunidade científica. Nesse contexto, o ensino (de graduação) é pouco valorizado e pouco ou nada contribui para a acumulação de capital científico.

A criação dos institutos centrais representou um passo importante no sentido da consolidação da prática de pesquisa na universidade. Por outro lado, o ensino de graduação e, mais especificamente, o ensino voltado para a formação profissional vão seguir um processo gradativo de perda de espaço institucional e importância simbólica.

Na UFMG, o movimento de reforma encontrou grande resistência por parte dos catedráticos mais ligados às unidades tradicionais. As maiores reações à reforma vinham principalmente de setores ligados à Faculdade de Medicina e à Escola de Engenharia, com apoio de setores de outras unidades que "dispunham de menor participação na estrutura de poder", como a Farmácia e a própria Filosofia. Essa reação porém não foi unânime, existindo grupos dentro dessas instituições interessados nos desdobramentos da reforma.

Houve, por exemplo, apoio de alguns catedráticos da área básica da Faculdade de Medicina como o Professor Amílcar Vianna Martins, pesquisador pioneiro na área de Parasitologia, que viu na criação do Instituto de Ciências Biológicas uma solução promissora para a valorização da pesquisa básica e o desenvolvimento de cursos de pós-graduação. (Haddad, 1988, p. 150)

O estudo realizado por Paixão (1994), ao relatar o conflito entre cátedras da área básica e cátedras da área profissional na Faculdade de Medicina, explicita as tensões e as dificuldades de implantação do Instituto de Ciências Biológicas na UFMG. De acordo com a autora,

A estrutura universitária, produzida pelo agregado de faculdades e articulado em torno da cátedra, privilegiava a formação profissional. Nessa estrutura, a pesquisa e seus agentes ocupavam lugar secundário. Assim, compreende-se que essa categoria docente almejasse uma reorganização da universidade que lhes fosse mais favorável. (Idem, p. 18)

Tratava-se, segundo a autora, de dar nova organização à universidade, transformando-a numa instituição produtora do saber, nos moldes das universidades modernas. Isso supunha o enfrentamento dos interesses das faculdades profissionais de prestígio que dominavam a universidade. Os agentes da prática emergente articularam-se propondo uma nova estrutura em que a prática de pesquisa fosse hegemônica.

Na Faculdade de Medicina, por exemplo, as tensões foram produzidas pela oposição de interesses simbólicos entre "catedráticos-médicos", aqueles que se ocupavam das cadeiras do ciclo profissional e identificavam-se, prioritariamente, com a formação profissional e "catedráticos-pesquisadores", responsáveis pelas cadeiras básicas e que priorizavam a prática da pesquisa9. Esse grupo ligado às áreas básicas aderiu à idéia da criação do Instituto de Ciências Biológicas – ICB –, pois ali as atividades de pesquisa e de formação de novos pesquisadores na área biológica, com a criação dos cursos de pós-graduação, seriam prioritárias e a Biologia, como disciplina autônoma, encontraria condições de se afirmar.

Enquanto na Medicina, Odontologia, Farmácia e Veterinária a pesquisa ocupava no currículo e no espaço institucional um lugar secundário, de apoio às cadeiras de formação profissional, na Faculdade de Filosofia sua situação era diferente. No curso de História Natural, os "catedráticos-pesquisadores" gozavam de prestígio na estrutura acadêmica do poder, pois ali a formação profissional não era dominante e a formação de professor não era socialmente prestigiada. Por outro lado, "se internamente o lugar da pesquisa era mais confortável, no confronto com as faculdades de prestígio, no âmbito da Universidade, a Faculdade de Filosofia era desprestigiada" (Paixão, 1994, p. 18).

Sendo assim, até o final dos anos 60 a pesquisa biológica na UFMG ocupava posições dominadas. Na análise de Paixão, "dominada no interior da Faculdade de Medicina, faculdade de prestígio. Dominante na Faculdade de Filosofia, faculdade de pouco prestígio" (1994, p. 18). Essa situação, porém, começará a se inverter a partir da consolidação dos institutos centrais na universidade e, em especial, da criação do Instituto de Ciências Biológicas, onde a prática da pesquisa, prática heterodoxa, tornar-se-á hegemônica.

Após conquistarem essa luta concorrencial, resultado de um investimento herético de longo prazo, os novos agentes do campo passam a aumentar seus lucros e a disputar os novos dividendos. A constituição do ICB/UFMG, a formação de seus departamentos, a criação do curso de Ciências Biológicas e as suas transformações são exemplos claros das tensões e das novas relações de poder instituídas no interior desse campo universitário a partir da reforma.

A ocupação do espaço físico do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, um prédio verticalizado de quatro andares e 17 blocos com uma área construída de mais de 46 mil metros quadrados, e a distribuição de seus departamentos nesse espaço constituem exemplos de como as novas forças passam a se relacionar no interior desse campo.

Os departamentos que hoje compõem o ICB originaram-se basicamente de duas vertentes: os que vieram das escolas e faculdades de prestígio que abrigavam disciplinas de biologia aplicada (Faculdades de Medicina, Farmácia, Odontologia e Escola de Veterinária), vertente biomédica, e outra, da Faculdade de Filosofia, instituição de pouco prestígio, onde eram formados os professores e pesquisadores em biologia básica, a vertente biológica do ICB. Da primeira, originaram-se os departamentos de Morfologia, Bioquímica e Imunologia, Parasitologia, Microbiologia, Fisiologia e Biofísica, Farmacologia e Patologia Geral. Da última vertente, originaram-se os departamentos de Biologia Geral, Botânica e Zoologia.

A Morfologia e a Bioquímica, por exemplo, foram os primeiros departamentos a se mudarem para as novas instalações no campus da Pampulha, e a Faculdade de Medicina resistia à saída desses departamentos e, também, à chegada de um novo grupo de professores na faculdade. A transferência dessas disciplinas não era desejada, principalmente pelo setor profissional, por envolver os seus mais prestigiados pesquisadores, bem como os equipamentos e os recursos financeiros. A Bioquímica, que ocupa atualmente grande área do quarto andar do prédio do ICB/UFMG, foi o primeiro departamento do ICB a organizar seu curso de pós-graduação.

A cátedra de Biologia Geral do curso de História Natural da antiga Faculdade de Filosofia passou a constituir o novo departamento de Biologia Geral, responsável pelas disciplinas da área de Genética, Evolução e Ecologia. As disciplinas comuns a outros departamentos como Citologia, Histologia, Embriologia e Fisiologia foram transferidas para seus respectivos novos departamentos, ou seja, Morfologia, as três primeiras, e Fisiologia, a última.

Apesar da adesão ao projeto de reestruturação da universidade e do apoio à criação do Instituto de Ciências Biológicas, os professores do curso de História Natural, principalmente o grupo liderado pelo professor Giorgio Schreiber, receavam ser engolidos pelos colegas da vertente biomédica no novo espaço de trabalho. E, pelo depoimento de um dos entrevistados, foi o que realmente aconteceu:

A partir dessa passagem da História Natural para o curso de Ciências Biológicas, o centro de decisão deixou de ser aquele grupo que influenciava na Botânica, na Zoologia, na Biologia. Passaram a exercer influência também outros grupos, os de formação médica e não era o núcleo antigo do curso de Ciências Biológicas. A grande mudança que houve é que, de repente, o núcleo antigo do curso de História Natural ficou afogado, ficou um grupinho pequeno em relação à enorme massa dos outros departamentos que compunham o instituto. (Luiz Alexandre Fallieri, entrevista em 30 de março de 1995)

Em 1970, ao apresentar uma nova proposta curricular para o Instituto de Ciências Biológicas, a Comissão de Implantação do Currículo do ICB/UFMG, que estudou e propôs a estrutura curricular a ser adotada no instituto, sugere sua aplicação imediata, pois

...o atraso na aplicação do novo currículo daria oportunidade à cristalização dentro do ICB de idéias filiadas ao antigo sistema, as quais seriam de extirpação muito mais difícil, se não se aproveitar a oportunidade criada pelo "clima" da reforma. (UFMG, 1970, p. 47)

Nesse relatório, surge a proposta de criação do curso de Ciências Biológicas em substituição ao curso de História Natural, este último associado ao chamado "antigo sistema". Segundo esse documento, "a criação deste curso, aliás, é uma antiga aspiração do corpo docente do atual curso de História Natural" (idem, p.27). No entender dessa comissão, uma das principais falhas do curso da antiga Faculdade de Filosofia estaria no não-cumprimento da finalidade de formar professores e pesquisadores na área biológica e se justifica assim:

Ele [o curso de História Natural] ministra conhecimentos profundos demais para professores de ensino médio, embora pouco profundos para formação de pesquisadores e professores de ensino superior. (Idem, p. 26)

O curso de História Natural foi considerado inadequado para a tarefa de formar pesquisadores e professores universitários também em razão de sua característica generalista, por tentar associar matérias da geociências e das ciências biológicas, algo que parecia cada vez mais difícil diante da rapidez com que os conhecimentos científicos vinham se acumulando e devido à diferenciação entre as técnicas aplicadas ao estudo das duas áreas.

Todavia, a decisão de substituir o curso de História Natural pelo de Ciências Biológicas não foi uma idéia original da comissão de Implantação do Currículo do ICB/UFMG. Na verdade, o relatório dessa Comissão procurou adaptar-se à Resolução 107/69 do Conselho Federal de Educação – CFE –, que revogou as resoluções anteriores relativas ao currículo mínimo e à duração dos cursos de Ciências Biológicas e História Natural10, e fixou normas para a criação dos novos cursos de Licenciatura e de Bacharelado em Ciências Biológicas. Em relação ao Bacharelado, essas normas eram dirigidas apenas para a modalidade médica.

A Resolução 107/69, oriunda do Parecer 107/69, ao estabelecer o currículo mínimo para a Licenciatura e para o Bacharelado, modalidade médica, em Ciências Biológicas, distingue um tronco comum e uma parte específica para cada uma dessas habilidades.

Deste modo, a proposta de um novo currículo para o curso de Ciências Biológicas do ICB/UFMG encontrou apoio na Resolução 107/69. Na estrutura apresentada pela comissão haveria um básico geral, com disciplinas comuns aos outros cursos, um básico específico e o terceiro e o quarto ano profissional, tendo o aluno de optar por uma área de concentração. Essa proposta ainda sofreu algumas alterações antes de se constituir no primeiro currículo do novo curso de Ciências Biológicas.

Finalmente, o curso de Ciências Biológicas da UFMG foi oficialmente criado em 1972. O primeiro currículo desse novo curso foi proposto por uma comissão especial de professores do ICB, dessa vez com maior representatividade dos professores da vertente biológica. O curso do ICB/UFMG foi, então, organizado tendo um tronco comum, completado em três períodos, e um ciclo específico (Licenciatura ou Bacharelado), cursado a partir do quarto período.

O Guia do Aluno, que trazia informações gerais sobre o curso recém-criado, apontava também os destinos dos formandos: "o licenciado em Ciências Biológicas terá sua área de atuação na parte de ensino de Biologia para o 2º grau. Os graduados em Bacharelado deverão dirigir-se aos cursos de pós-graduação, ao magistério superior e/ou dedicar-se à pesquisa".

A partir daí o bacharelado começa a ter realmente uma cara. Porque antes não existia, você não via, quer dizer: "o que era ser um bacharel?" Agora não, agora você já tem alguma coisa que realmente o distingue. (Sílvia Elizabeth Gerken, entrevista em 10 de maio de 1995)

O bacharelado passa a identificar-se definitivamente com a atividade de pesquisa. Essa modalidade começa a ser considerada o primeiro passo na carreira acadêmica, na formação de novos pesquisadores. A partir daí, os alunos do bacharelado apresentam-se como uma boa opção de investimento pelos novos dominantes desse campo, de acordo com a expressão de Bourdieu.

Percebe-se então que a Reforma de 1968 e a consolidação dos institutos básicos na universidade instauram a supremacia dos novatos no campo acadêmico, daqueles agentes dotados de um habitus de pesquisa, que possuem e acumulam capital científico por meio da atividade de investigação. Conseqüentemente, passaram de dominados a dominantes, e a pesquisa transformou-se em uma prática ortodoxa, vindo a ter um alto preço no campo universitário brasileiro. Os novos dominados são aqueles que se ocupam principalmente do ensino (de graduação), atividade cada vez menos valorizada nesse campo.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O menor status acadêmico da atividade de ensino em relação à pesquisa, da graduação comparada à pós-graduação, da licenciatura em relação ao bacharelado, e as dificuldades de implementação de mudanças nos cursos de formação de professores são hoje o reflexo das relações de força, das lutas e estratégias, dos interesses e lucros estabelecidos no campo universitário brasileiro desde a sua origem. Os desafios colocados para a melhoria dos cursos de licenciatura talvez sejam muito maiores que uma simples reforma curricular, mudanças nas ementas, nos nomes e na carga horária das disciplinas ou na concepção de formação de professores que se tem hoje nas universidades.

Por outro lado, não são medidas simplistas e banalizadoras que procuram retirar das universidades a responsabilidade pela formação docente que irão resolver os problemas atuais das licenciaturas. Além disso, a não-valorização do profissional da educação, seus salários aviltantes, as precárias condições de trabalho e a falta de um plano de carreira para a profissão continuam sendo problemas fulcrais que prosseguem sem solução em nosso país e que afetam diretamente as questões da formação inicial de professores.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ANDRÉ, M.E.D.A. Estudo de caso: seu potencial na educação. Cadernos de Pesquisa, n.49, p. 51-4, maio 1984.

BOURDIEU, P. O Campo científico. In: ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-55.

________. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 77-95: O Campo intelectual: um mundo à parte.

________. O Poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 59-73: A Gênese dos conceitos de habitus e de campo.

________. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983a, p. 89-94: Algumas propriedades dos campos.

FACULDADE DE FILOSOFIA DE MINAS GERAIS. Anuário da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais (1939-1953). Belo Horizonte, 1953.

________. Guia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1953.

GARCIA, M. M. A. Tempos pioneiros: a constituição do campo da didática no ensino superior brasileiro. Belo Horizonte, 1994. Dissert. (mestr.) Faculdade de Educação da UFMG.

HADDAD, M. L. A. Faculdade de Filosofia de Minas Gerais: raízes da idéia de universidade na UMG. Belo Horizonte, 1988. Dissert. (mestr.) Faculdade de Educação da UFMG.

LÜDKE, M., ANDRÉ, M. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

PAIXÃO, L. P. Cátedra e hegemonia da prática docente na Faculdade de Medicina da UFMG. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 17, Caxambu, 1994. Anais. Belo Horizonte: ANPEd, 1994.

TRIVIÑOS, A. N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1992.

UFMG. Instituto de Ciências Biológicas. Currículo do Instituto de Ciências Biológicas: relatório da Comissão Especial destinada ao estudo, planejamento e implantação do currículo do ICB da UFMG. Belo Horizonte, 1970.


NOTAS TÉCNICAS:


Este artigo retoma e amplia questões tratadas em trabalho apresentado na 22ª Reunião Anual da ANPEd, em Caxambu (MG), de 26 a 30 de setembro de 1999.


1. É o próprio Bourdieu que esclarece esse termo: "falar de capital específico é dizer que o capital vale em relação a um certo campo, portanto dentro dos limites desse campo, e que ele só é convertível em outra espécie de capital sob certas condições" (1983a, p. 90).

2. Por habitus (Bourdieu, 1983, 1989) se quer designar um sistema de disposições duráveis e socialmente constituídas que, incorporadas a um agente ou a um conjunto de agentes, orientam e dão significado às suas ações e representações. São "estruturas estruturantes" que ultrapassam o nível da consciência e fazem a mediação entre, de um lado, as estruturas sociais e, de outro, as práticas individuais. Constitui, ao mesmo tempo, um "ofício", um capital de técnicas, de crenças e referências em relação aos diferentes campos da vida social que orientam a ação dos indivíduos diante do mundo e são o fruto de sua história cultural e social pregressa.

3. Segundo Triviños, o "estudo de caso" é um dos mais relevantes tipos de pesquisa qualitativa em Ciências Sociais, constituindo-se em uma expressão importante dessa tendência na investigação educacional. Segundo esse autor, "o estudo de caso é uma categoria de pesquisa cujo objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente" (1992, p. 133). Na mesma direção, André, fundamentada em Aldeman et al., afirma que "o estudo de caso é um termo amplo, incluindo uma família de métodos de pesquisa cuja decisão comum é o enfoque numa instância" (1984, p. 51). Partindo dessa definição, autores como Nisbett e Watt sugerem que "o estudo de caso seja entendido como uma investigação sistemática de uma instância específica". Essa instância, segundo eles, "pode ser um evento, uma pessoa, um grupo, uma escola, uma instituição, um programa, etc." (idem, ibidem). De acordo ainda com Lüdke e André, o "caso" é sempre bem delimitado, devendo ter seus contornos claramente definidos no desenrolar do estudo. O "caso" pode ser similar a outros, mas é ao mesmo tempo distinto, pois tem um interesse próprio, singular. Fundamentadas em Goode e Hatt, elas afirmam que o caso se destaca por constituir uma unidade dentro de um sistema mais amplo. "O interesse, portanto, incide naquilo que ele tem de único, de particular, mesmo que posteriormente venham a ficar evidentes certas semelhanças com outros casos ou situações" (1986, p. 17). O curso de Ciências Biológicas da UFMG constitui-se no caso ou unidade que pretendemos estudar para melhor entender a situação atual dos cursos de formação docente nas universidades brasileiras.

4. A autora refere-se, ao mesmo tempo, ao "curso de Didática", que abrangia o conjunto das disciplinas pedagógicas responsáveis pela formação do futuro licenciado, e à "disciplina Didática" oferecida pela seção de mesmo nome da Faculdade de Filosofia.

5. Esses/as professores/as tinham sua origem social em frações das classes médias e eram oriundos/as do ensino primário com uma formação escolar e acadêmica que culminava na Escola Normal, quando muito, acrescida de algum curso de especialização, realizado em instituições que não tinham o status de escola de nível superior.

6. Segundo o Guia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais, até o ano de 1953, já haviam publicado mais de 50 trabalhos, sendo a maioria em revistas estrangeiras.

7. A pesquisadora chama atenção para o curioso fato de o professor Braz Pellegrino, italiano e amigo da fascista Casa de Itália, ter convidado para trabalhar na Faculdade de Filosofia o compatriota judeu Giorgio Schreiber, que viera para o Brasil fugindo do regime anti-semita europeu.

8. As estratégias, com o sentido que lhe é atribuído por Bourdieu (1983a, 1990), são "ações inteligíveis, mas não necessariamente inteligentes ou resultantes de um cálculo racional e cínico, que orientam as escolhas e os interesses dos agentes em função de um habitus adquirido e das possibilidades que um determinado campo oferece para obtenção e maximização dos lucros específicos em jogo no campo em questão".

9. De acordo com Bourdieu (1983, p. 136-40), nas lutas no interior do campo, os agentes ou grupos de agentes concorrentes desenvolvem estratégias de "conservação" e "exclusão", ou então, estratégias de "subversão" de acordo com suas posições relativas no interior do campo. Essas estratégias, as primeiras levadas a efeito pelas ortodoxias (aqueles que ocupam as posições dominantes no interior do campo), e as segundas, implementadas pelas heterodoxias (aqueles que ocupam as posições dominadas no campo ou que são dele excluídos), visam, em última análise, defender ou conquistar uma determinada posição dominante, nas hierarquias constitutivas do campo, que se expressa no poder de definir os critérios e o monopólio do exercício legítimo de uma determinada atividade científica.

10. Em 1964, o CFE estabeleceu um currículo mínimo para a Licenciatura em Ciências Biológicas (Resolução n. 30/64). Em 1966, o CFE fixou pela primeira vez o currículo mínimo para o Bacharelado em Ciências Biológicas, modalidade médica (Resolução n. 571/66).