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“História do Ensino Superior Brasileiro”, de autoria de Álaze
Gabriel.
Autoria:
Antonio
Carlos Pereira Martins. Professor Titular de Urologia, Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto-USP
INTRODUÇÃO
As
primeiras escolas de ensino superior foram fundadas no Brasil em 1808 com a
chegada da família real portuguesa ao país. Neste ano, foram criadas as escolas
de Cirurgia e Anatomia em Salvador (hoje Faculdade de Medicina da Universidade
Federal da Bahia), a de Anatomia e Cirurgia, no Rio de Janeiro (atual Faculdade
de Medicina da UFRJ) e a Academia da Guarda Marinha, também no Rio. Dois anos
após, foi fundada a Academia Real Militar (atual Escola Nacional de Engenharia
da UFRJ). Seguiram-se o curso de Agricultura em 1814 e a Real Academia de
Pintura e Escultura1. Até a proclamação da república em 1889, o
ensino superior desenvolveu-se muito lentamente, seguia o modelo de formação
dos profissionais liberais em faculdades isoladas, e visava assegurar um
diploma profissional com direito a ocupar postos privilegiados em um mercado de
trabalho restrito além de garantir prestígio social. Ressalte-se que o caráter
não universitário do ensino não constituía demérito para a formação superior
uma vez que o nível dos docentes devia se equiparar ao da Universidade de
Coimbra, e os cursos eram de longa duração2.
Com
a independência política em 1822 não houve mudança no formato do sistema de
ensino, nem sua ampliação ou diversificação. A elite detentora do poder não
vislumbrava vantagens na criação de universidades. Contam-se 24 projetos propostos
para criação de universidades no período 1808-1882, nenhum dos quais aprovado3.
Depois de 1850 observou-se uma discreta expansão do número de instituições
educacionais com consolidação de alguns centros científicos como o Museu
Nacional, a Comissão Imperial Geológica e o Observatório Nacional. A ampliação
do ensino superior, limitado às profissões liberais em poucas instituições
públicas, era contida pela capacidade de investimentos do governo central e
dependia de sua vontade política.
Até
o final do século XIX existiam apenas 24 estabelecimentos de ensino superior no
Brasil com cerca de 10.000 estudantes3. A partir daí, a iniciativa
privada criou seus próprios estabelecimentos de ensino superior graças à
possibilidade legal disciplinada pela Constituição da República (1891). As
instituições privadas surgiram da iniciativa das elites locais e confessionais
católicas. O sistema educacional paulista surgiu nesta época e representou a
primeira grande ruptura com o modelo de escolas submetidas ao controle do
governo central. Dentre os cursos criados em São Paulo neste período, constam
os de Engenharia Civil, Elétrica e Mecânica (1896), da atual Universidade
Mackenzie, que é confessional presbiteriana. Nos 30 anos seguintes, o sistema
educacional apresentou uma expansão considerável, passando de 24 escolas
isoladas a 133, 86 das quais criadas na década de 19203.
A
idéia de universidade mobilizou gerações de propositores e críticos desta forma
de ensino. O projeto elaborado pela elite intelectual laica defendia a
universidade pública em oposição ao modelo de instituições isoladas e propunha
a institucionalização da pesquisa em seu interior. Alguns países da América
Hispânica dispunham de universidades no período colonial, sendo a primeira
delas criada no México em 1553, graças à concepção imperial da Espanha diversa
da de Portugal. Em contraposição, o pragmatismo português não permitiu que o
Brasil dispuzesse de universidades no período colonial, e a formação do núcleo
de ensino superior só teve início com a vinda da família real portuguesa. O seu
desenvolvimento foi voltado para a formação profissional sob controle do
Estado. O modelo adotado combinou o pragmatismo da reforma pombalina em
Portugal (para libertar o ensino dos entraves conservadores tidos como responsáveis
pelo atraso do país em relação aos demais europeus), e o modelo napoleônico que
contemplava o divórcio entre o ensino e a pesquisa científica.
Na
década de 1920 o debate sobre a criação de universidades não se restringia mais
a questões estritamente políticas (grau de controle estatal) como no passado,
mas ao conceito de universidade e suas funções na sociedade. As funções
definidas foram as de abrigar a ciência, os cientistas e promover a pesquisa.
As universidades não seriam apenas meras instituições de ensino mas centros de
saber desinteressado. Na época, o país contava com cerca de 150 escolas
isoladas e as 2 universidades existentes, a do Paraná e a do Rio de Janeiro,
não passavam de aglutinações de escolas isoladas. Foi com base nestes debates que
o governo provisório de Getúlio Vargas promoveu (em 1931) ampla reforma
educacional, que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos (primeiro
Ministro da Educação do país), autorizando e regulamentando o funcionamento das
universidades, inclusive a cobrança de anuidade, uma vez que o ensino público
não era gratuito. A universidade deveria se organizar em torno de um núcleo
constituído por uma escola de Filosofia, Ciência e Letras. Embora a reforma
representasse um avanço, ela não atendia a principal bandeira do movimento da
década de 1920 por não dar exclusividade pública ao ensino superior além de
permitir o funcionamento de instituições isoladas.
O
período de 1931 a 1945 caracterizou-se por intensa disputa entre lideranças
laicas e católicas pelo controle da educação. Em troca do apoio ao novo regime,
o governo ofereceu à Igreja a introdução do ensino religioso facultativo no
ciclo básico, o que de fato ocorreu a partir de 1931. As ambições da Igreja
Católica eram maiores e culminou com a iniciativa da criação das suas próprias
universidades na década seguinte.
O
período de 1945 a 1968 assistiu à luta do movimento estudantil e de jovens
professores na defesa do ensino público, do modelo de universidade em oposição
às escolas isoladas e na reinvidicação da eliminação do setor privado por
absorção pública. Estava em pauta a discussão sobre a reforma de todo o sistema
de ensino, mas em especial a da universidade. As principais críticas ao modelo
universitário eram: a instituição da cátedra, a compartimentalização devida ao
compromisso com as escolas profissionais da reforma de 1931 (que resistiam à
adequação e mantinham a autonomia), e o caráter elitista da universidade. O
catedrático vitalício, com poderes de nomeação ou demissão de auxiliares, era
tido como empecilho à organização de uma carreira universitária e passou a
simbolizar a rigidez e o anacronismo. O elitismo se refletia no atendimento de
parcela mínima da população, sobretudo dos estratos mais privilegiados. O que
se pretendia era a extinção da cátedra, com organização departamental
dependente de decisões democráticas. Esse debate permeou a discussão da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, aprovada pelo Congresso em 1961, que de maneira
diversa da reforma de 1931 não insistia que o ensino superior deveria
organizar-se preferencialmente em universidades. Para os
"reformadores" a LDB de 1961 representou uma derrota e foi
considerada uma vitória dos defensores da iniciativa privada, acenando a
bandeira da liberdade do ensino.
O
regime militar iniciado em 1964 desmantelou o movimento estudantil e manteve
sob vigilância as universidades públicas, encaradas como focos de subversão,
ocorrendo em conseqüência o expurgo de importantes lideranças do ensino
superior e a expansão do setor privado, sobretudo a partir de 19704,5.
A reforma de 1968, a despeito de ocorrer em clima de deterioração dos direitos
civis, inspirou-se em muitas das idéias do movimento estudantil e da
intelectualidade das décadas anteriores: 1- instituiu o departamento como
unidade mínima de ensino, 2 – criou os institutos básicos, 3 – organizou o
currículo em ciclos básico e o profissionalizante, 4 – alterou o exame
vestibular, 5 – aboliu a cátedra, 6 – tornou as decisões mais democráticas, 7 –
institucionalizou a pesquisa, 8 – centralizou decisões em órgão federais. A
partir de 1970, a política governamental para a área foi estimular a
pós-graduação e a capacitação docente (PICD).
Em
1933, ano em que se passou a contar com as primeiras estatísticas sobre
educação, o setor privado respondia por 64,4% dos estabelecimentos e 43,7% das
matrículas do ensino superior, proporções que não se modificaram de maneira
substantiva até a década de 1960 porque a expansão do ensino privado foi
contrabalançado pela criação das universidades estaduais e pela federalização
com anexação de instituições privadas.3 No período 1940-1960 a
população do país passou de 41,2 milhões para 70 milhões (crescimento de 70%),
enquanto que as matrículas no ensino superior triplicaram. Em 1960, existiam
226.218 universitários (dos quais 93.202 eram do setor privado) e 28.728
excedentes (aprovados no vestibular para universidades públicas, mas não
admitidos por falta de vagas)6. Já no ano 1969 os excedentes somavam
161.527. A pressão de demanda levou a uma expansão extraordinária no ensino
superior no período 1960-1980, com o número de matrículas saltando de
aproximadamente 200.000 para 1,4 milhão, ¾ partes do acréscimo atendidas pelo
iniciativa privada. Em finais da década de 1970 o setor privado já respondia
por 62,3% das matrículas, e em 1994 por 69%4. Deve-se salientar que
a opção do setor público por universidades que aliassem o ensino à pesquisa
elevou os custos do ensino público, restringindo sua capacidade de expansão, e
abriu o espaço para o setor privado atender a demanda não absorvida pelo
Estado. Nada obstante, o dinamismo do crescimento do setor privado em busca do
lucro pode ter ocorrido às expensas da qualidade. Apesar da exigência legal da
reforma de 1968 estabelecer o modelo único de ensino superior com a indissociabilidade
do ensino e da pesquisa, na prática o sistema expandiu-se mediante a
proliferação de estabelecimentos isolados e poucas foram as universidades que
conseguiram instituir a produção científica. Por outro lado, a falta de
reconhecimento da conveniência ou da necessidade da heterogeneidade, que
condicionam a atuação do órgão regulador atual (MEC), pode estimular a
falsidade ou o cumprimento formal de normas, inibindo o reconhecimento do que
possa ser positivo ou inovador no modelo alternativo. Todavia, a insistência no
modelo único estimula a adequação sobretudo do setor privado, gerando demanda
adicional na pós-graduação principalmente do setor público (melhor aparelhado
para este tipo de ensino) e fomentando a pesquisa.
A
partir de 1980 observou-se uma redução progressiva da demanda para o ensino
superior em decorrência da retenção e evasão de alunos do 2º grau, inadequação
das universidades às novas exigências do mercado e frustração das expectativas
da clientela em potencial. Na década de 1990 a relação de egressos do segundo
grau e vagas oferecidas no ensino superior é de 1/1 no Sul e Sudeste, 1/1,3 no
Centro-Oeste, e de 1/2,5 no Norte e Nordeste.4 Enquanto em 1980
cerca de 11% das vagas oferecidas nos cursos superiores não foram preenchidas,
em 1990 a proporção passou para 19%. Entre 1985 e 1993 o número de vagas
oferecidas no ensino superior manteve-se relativamente estável, em torno de
1.500.000, com declínio relativo da participação do setor privado. A
interiorização do ensino superior, iniciada na década de 1950, acentuou-se
tendo como um dos motivos básicos a criação de facilidades ou a busca de
clientela. Outra resposta à estabilidade da demanda foi a ampliação acentuada
do número de cursos e a fragmentação de carreiras pelo setor privado para
colocar novas ofertas ao mercado e com isso atrair clientela. A fragmentação de
carreiras (em várias áreas do conhecimento) torna os cursos menos dispendiosos
e converge para o que acontece em algumas áreas em outros países.
Uma
das principais transformações do ensino superior no século XX consistiu no fato
de destinarem-se também ao atendimento à massa e não exclusivamente à elite.
Num dos estudos da década de 1990, observou-se que no ensino superior,
estudantes oriundos de famílias com renda de até 6 salários mínimos
representavam aproximadamente 12% dos matriculados em instituições privadas e
11% em instituições públicas. Tanto no setor privado, quanto no público, a
proporção de estudantes oriundos de famílias com renda acima de 10 salários
mínimos ultrapassa os 60%, o que desmistifica a crença de que os menos
favorecidos é que freqüentam a instituição privada7. Se por um lado,
há um contingente expressivo de estudantes de nível superior proveniente das
camadas de renda intermediária, salta à vista que os menos favorecidos não
usufruem da igualdade de oportunidade de acesso ao ensino superior seja ele
público ou privado, não por falta de vagas ou de reforma deste, mas por
problemas sociais e deficiências do ensino fundamental.
Na
década de 1990, a proporção de jovens entre 20 e 24 anos que ingressa no ensino
superior correspondia a 11,4%, conferindo ao Brasil o 17º lugar entre os países
latino-americanos, superando apenas a Nicarágua e Honduras8. Não é
uma posição honrosa que como se comentou não é condicionada por falta de vagas
no ensino superior, mas pelo número de egressos do ensino secundário. As
deficiências do ensino público fundamental têm sido supridas parcialmente pela
excelente qualidade do ensino nos estabelecimentos privados. Mas, esta solução
de mercado discrimina a numerosa população menos favorecida, que assim
permanecerá enquanto não houver melhora da distribuição de renda, do ensino
público fundamental e mercado de trabalho mais amplo. Algumas decisões do
Governo Federal procurando aumentar a oferta de vagas no ensino fundamental e o
oferecimentos de bolsas-escola parecem medidas pontuais apropriadas, embora por
si só insuficientes. As próprias restrições governamentais à reprovação no
ensino fundamental (como a adotada no Estado de São Paulo), se bem
compreendidas pelos professores dos respectivos níveis e percebidas como
incremento de suas responsabilidades na recuperação dos alunos a que estão
sujeitos, representam outra tentativa de implementar a escolaridade da
população e de ampliar o número de egressos dos cursos secundários.
REFERÊNCIAS
1.
Cunha LA. A universidade temporã.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.
2.
Mattos PLCL. As universidades e o
governo federal. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1983.
3.
Teixeira A. O ensino superior no Brasil
– análise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, 1969.
4.
Sampaio, H. Ensino superior no Brasil.
O setor privado. Ed. Hucitec, São Paulo, 1999.
5.
Martins Filho, J. Movimento estudantil e
ditadura militar (1964 – 1968). Papirus, Campinas, 1987.
6.
Cunha, LA. A expansão do ensino
superior: causas e conseqüências. Debate & Crítica 1975; 5: 27-58, São
Paulo:Hucitec.
7.
Cardoso RCL, Sampaio H. Estudantes
universitários e o trabalho. Revista Brasileira de Ciências Sociais 1994;
26: 30-50.
8.
Garcia CG. La reforma de la educación
superior en Venezuela desde una perspectiva comparada. In: Catani, A
- Congresso Internacional de políticas de educação superior na América Latina
no limiar do século XXI. Recife, 1997.