sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

ABANDONO DAS INSTITUIÇÕES: CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS E UNIVERSIDADE

Blog  HISTÓRIA DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO, de autoria Álaze Gabriel.


Autoria:
Maria Inês Assumpção Fernandes. Instituto de Psicologia – USP

RESUMO:

O presente trabalho discute a proposta atual de reforma do ensino superior no país como decorrência das transformações da Lei de Diretrizes e Bases de 1996. Para tanto focaliza a discussão a partir de três eixos principais, a saber: a história recente da construção de políticas públicas na área de Educação e as implicações decorrentes da não discriminação do que seja Ensino Superior e Universidade; a definição das diretrizes para o ensino superior determinadas por organismos internacionais interessados na participação do setor privado sobre a Formação (profissional); e a identificação dos princípios que sustentam o modelo a partir do qual a reforma se apóia, ou seja, a construção das Diretrizes Curriculares para os cursos de Graduação e a consolidação de um Sistema de Avaliação para o Ensino Superior.

Descritores: Universidade. Ensino superior. Educação. Avaliação.

INTRODUÇÃO

Os estudos sociológicos têm mostrado, como nos informa Santos (1995), o quanto as contradições no sistema educativo podem encobrir articulações mais profundas entre os diversos sub-sistemas sociais. Citando Bourdieu e Passeron demonstra que o sistema educativo pode funcionar de tal forma que a contradição entre o princípio de igualdade de oportunidades e mobilidade social pela escola e a consolidação e aprofundamento das desigualdades sociais, não seja visível. Esse encobrimento estará dessa forma, legitimando uma ordem social estruturalmente incoerente que não se sustenta nas premissas igualitárias que o próprio sistema propõe.
Assim, entre os desafios que nos são colocados para reflexão, está sempre presente a preocupação com as novas funções atribuídas às instituições de ensino superior e particularmente à Universidade. O mal-estar democrático no qual vivemos, para além da má distribuição de riquezas, deve se à decadência e ao abandono das instituições públicas nas quais a desigualdade social e civil é, muitas vezes, mascarada por uma legislação que facilita o livre acesso às suas dependências, como se essa igualdade social e civil não pressupusesse pelo menos uma grosseira aproximação do que seja igualdade econômica.
A nova e contínua demanda pela formação superior e as mudanças na relação entre formação e exercício profissional estabelecem um outro lugar ao conhecimento supostamente entrelaçado ao cumprimento de uma tarefa político-institucional.
No Brasil há uma equivocada identificação entre Universidade e Ensino Superior. Este equívoco é mantido ora por quem
busca a autonomia universitária por razões empresariais, ora defendida como princípio por quem só reconhece como ensino superior aquele que se pratica em universidades plenas e dificulta entre nós a compreensão da dimensão da questão da universidade pública e de sua destruição. (Menezes, 1996, p. 10)
Devemos lembrar que por mais importante que seja a formação profissional superior, a Universidade foi criada para cumprir múltiplas funções dentre as quais o ensino superior, embora esta não seja sua finalidade exclusiva nem a principal. Elas foram criadas para transcender essa dimensão. São muito mais do que centros de formação superior ou de treinamento técnico. "Além da educação superior se promove cultura, se faz ciência e se desenvolve tecnologia" (Menezes, 1996, p. 9). Em qualquer análise sobre a situação do ensino superior merece atenção a sua evolução até a estrutura atual destacando "os processos de privatização, de modernização institucional e de gestão das universidades" (Cunha, 1998, p. 1).

SOBRE A UNIVERSIDADE

No que diz respeito à Universidade a situação, historicamente, tem sido complexa. A sociologia das universidades tem discutido suas funções e tem mostrado a existência de colisões. A função de investigação colide freqüentemente com a função de ensino. Neste domínio de ensino, os objetivos da educação geral e da preparação cultural colidem, no interior da mesma instituição, com os da formação profissional ou da educação especializada.
São - lhe feitas exigências cada vez maiores por parte da sociedade ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais restritas as políticas de financiamento de suas atividades por parte do Estado. Duplamente desafiada, pela sociedade e pelo Estado, a Universidade, de um lado, não parece preparada para enfrentar tais desafios, tanto mais que estes apontam para transformações profundas e não simples reformas parcelares. Tal despreparo, mais do que conjuntural, parece ser estrutural, na medida em que a perenidade da Instituição Universitária, sobretudo no mundo ocidental, está associada à sua rigidez funcional e organizacional, à sua relativa impermeabilidade às pressões externas, enfim àquilo que tem sido muitas vezes proclamado como a sua aversão à mudança. (Santos, 1995, p. 187)
Essa "aversão," contudo, procura resguardar a capacidade de discriminação em relação à preservação daquilo que é necessário para o cumprimento de suas funções políticas e sociais. O objetivo das reformas e das reestruturações curriculares tem sido freqüentemente o de manter tais condições sob controle, através da gestão cuja natureza é a de não intervir ao nível das causas profundas das contradições.
A educação está em crise e a universidade a segue. E esta crise expressa o conjunto das contradições que ela enfrenta: a luta entre uma produção de conhecimentos exemplares, da qual ela se ocupa desde a Idade Média, e a produção de conhecimento úteis para a formação de força de trabalho qualificada exigida pelo desenvolvimento industrial. Ela também convive com a contradição entre as exigências socio-políticas de democratização e de igualdade de oportunidades e a hierarquização dos saberes especializados, garantida pela restrição de acesso e credencialização de competências; convive com a luta entre a reinvindicação de autonomia quanto à definição de valores e a submissão crescente a critérios de eficácia e de produtividade, herança do poderio empresarial. Qual seu novo lugar? São contradições superáveis?
O momento atual no Brasil, nos convoca a averiguar as múltiplas determinações que estão presentes nessas novas exigências dirigidas à Universidade e a identificar as brechas possíveis para a superação desses impasses. As principais linhas de questionamento quanto ao seu papel nos novos tempos dizem respeito às crises de legitimidade, de hegemonia e institucional e se referem, em primeiro lugar, à sua função social: no momento em que uma cultura relativamente homogênea assumiu, no ocidente moderno, o papel da religião e revelou-se como novo cimento social a Universidade teve um grande momento. Esse sentido social foi ainda mais acentuado quando lhe coube participar do esforço de construção do estado-nação (mesmo que no interior desse estado, estivesse voltado para o fortalecimento de uma classe social em detrimento das demais). Na contemporaneidade que tende para a mundialização a universidade é secundária, na medida em que a cultura está despida desse seu papel anterior de portadora de uma idéia de nação e de fonte geradora de sentido para a vida e para o mundo
mostrando-se sobretudo como instrumento de lazer descompromissado e como simples mercadoria entre tantas outras; não detém mais o monopólio da produção do conhecimento e, nem sequer, da informação, e como a cultura não é mais passível de definição precisa, porque tudo é cultura, ela perdeu ao mesmo tempo parcela significativa de seu sentido social e educativo e só lhe cabe resignar-se à forma menor de uma escola, voltada para a preparação imediatista de mão de obra a ser burilada fora dela, mais tarde, pela empresa, quer dizer, pelo mercado. (Teixeira Coelho, 1998, p. 15)

CENÁRIO NACIONAL E ORGANISMOS INTERNACIONAIS

Tais questionamentos que vêm sendo veiculados em diferentes espaços de debate no Brasil e no exterior têm sido objeto de exame detalhado pelas grandes organismos internacionais. Estão nas discussões realizadas nos Estados Unidos, através da OCDE - Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos e na Europa, através da ERT - Mesa Redonda Européia dos Industriais. Estes organismos procuram definir o novo perfil da Universidade do Século XXI voltado a privilegiar as demandas ou as necessidades de mercado.
Há dez anos já se publicava um documento intitulado "Educação e Competência" na Europa onde se afirmava, de início, que
a educação e a formação são considerados investimentos estratégicos vitais para a vitória futura da empresa. E onde se deplora que o ensino e a formação sejam sempre considerados pelos governantes como um "affaire" interior onde a indústria não tem senão uma fraca influência sobre os programas de ensino. (Sélys, 1998, p. 14)
A conclusão do documento sugere que a industria e os estabelecimentos de ensino - notadamente graças à aprendizagem à distância - deveriam trabalhar em conjunto para o desenvolvimento de programas de ensino. O conjunto dessas novas estratégias, preparado pelos empresários, deverá desembocar em melhor adequação do ensino às exigências da indústria, numa preparação ao teletrabalho, numa redução dos custos de formação na empresa e, por fim, num processo de atomização dos estudantes e dos professores cujas eventuais turbulências são sempre duvidosas.
Em documento de 1991 afirma-se que uma Universidade Aberta é uma empresa industrial e o ensino superior à distância é uma indústria nova. Esta empresa deve vender seus produtos sob a modalidade do ensino continuado, que regem as leis de oferta e procura. Assim o alcance destes objetivos exige que a estrutura de educação seja concebida em função das necessidades dos clientes. Uma concorrência se instaurará entre as "prestadoras de serviços de aprendizagem" à distância o que pode segundo tais avaliações, desembocar em melhora da qualidade dos serviços (Sélys, 1998, p. 14). Destaca-se claramente os fins dos industriais: criar, à margem de serviço de ensino público reduzido a oferecer uma educação de base, um vasto sistema privado e comercial.
No limitado cenário nacional, a aderência a esse modelo é evidente.
Analisemos alguns pontos do capítulo "Da Educação Superior," presentes na nova Lei de Diretrizes e Bases - LDB de 1996. Este capítulo foi alvo de intensos e polêmicos debates no processo de sua elaboração. Assim, às concepções defendidas pelos professores e encontradas nos projetos originados na Câmara Federal se apunham àquelas defendidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e manifestas no projeto Darcy Ribeiro. As primeiras explicitam os objetivos da educação superior, sua abrangência, a duração de ano letivo, a oferta desse nível de ensino no período noturno, a autorização de funcionamento de instituições de ensino, segundo o Plano Nacional de Educação, a avaliação externa e, a cada cinco anos, o credenciamento de universidades, entre outros pontos. A nova LDB embora mantendo parte desses pontos alterou substancialmente outros, referentes principalmente a objetivos e finalidades, abrangência e programas, condição para autorização, credenciamento, processos de avaliação, etc (Muranaka & Minto, 1998, p. 66).
Assim, ao determinar as finalidades, o artigo 43, não reafirma o princípio da indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade. Tal tríade, a ser explicitada no artigo 52, embora garantida às universidades não é mais extensiva à formação em curso superior. Este ponto permite supor a distinção de qualidade entre cursos, instalando e impondo à educação a lógica de mercado ou seja, diante de um pressuposto aumento de pressão social por esse nível, planeja-se uma oferta diversificada, através de instituições que oferecem ensino de qualidade diferenciada, podendo redundar em cursos de 1ª, 2ª e 3ª categorias, de acordo com a possibilidade financeira do consumidor. Cumpre-se, assim, o duplo objetivo de atender à demanda e baratear os custos.
Tal proposta se articula num documento do Banco Mundial onde são definidas quatro orientações-chave para a reforma do ensino superior entre elas o desenvolvimento de instituições não universitárias cujos "custos mais baixos são atrativos para os estudantes e mais fáceis de serem estabelecidos por provedores privados (Banco Mundial, 1995, p. 5, citado por Muranaka & Minto, 1998, p. 67). Assim, além da ênfase privativista, percebe-se a inclinação para dar respostas mais de acordo com o mercado de trabalho.
Os efeitos dessas determinações, a longo prazo, poderão se refletir mesmo entre as Instituições de Ensino Superior consolidadas como Universidade, na medida em que poderão se desmembrar em núcleos de excelência partindo o conhecimento em especializações por campo de saber. A perseguição de um ideal especializante e profissionalizante é próprio da universidade deste período pós-moderno.

FATOS DA NOSSA HISTÓRIA

Muito do que se discute atualmente acerca da universidade poderia ser mais bem focalizado se considerássemos determinadas continuidades, por vezes deliberadamente ocultadas sob a capa das novidades ilusórias e das emergências do presente. Desde que o Relatório Atcon diagnosticou o estrangulamento no canal de acesso à universidade, a preocupação dos governos que se sucederam durante a ditadura militar foi a ampliação de vagas sem que isto representasse um investimento significativo. A partir daí é que se firmou a argumentação de que o ensino privado superior cumpriria uma função complementar, tendo em vista a impossibilidade de o poder público arcar completamente com este ônus. (Silva, 2000, p. 1)
A mentalidade organizacional começa a encontrar canais para se colocar no âmbito do sistema universitário e a ganhar o mesmo espaço já alcançado nos âmbitos do ensino de primeiro e segundo graus. A idéia era trazer a eficiência empresarial, já comprovada no ensino básico, para o ensino universitário e marcar, também neste nível,superioridade organizacional da empresa particular em relação à instituição pública. Lembremos que originalmente, o surgimento da universidade "não decorreu da existência de instituições de ensino fundamental ou básico mas constituiu sim, ao contrário, uma pré-condição para o surgimento das demais escolas" (Menezes, 1996, p. 9).
A proliferação de escolas privadas de ensino superior (o CFE deferiu 759 solicitações entre 1968 e 1972) permitiu o acesso de vastas camadas da classe média ao ensino universitário, atendendo assim a uma expectativa que se vinha tornando cada vez maior. Em segundo lugar, o caráter próprio destas organizações empresariais supunha naturalmente um perfil de curso superior significativamente distinto do que ocorria nas instituições públicas. Os parâmetros de eficiência e lucratividade excluíam qualquer ideário pedagógico mais consistente, o que foi substituído pelo senso de oportunidade comercial na organização e venda de serviços segundo o critério da demanda.
Este tipo de atitude compunha-se muito bem com o regime autoritário, que entendia a universidade como formadora de "recursos humanos" de acordo com a ideologia do desenvolvimento e segurança nacional. Desta forma a ditadura encontrou na expansão do ensino privado tanto um meio de se desonerar da responsabilidade educativa quanto um instrumento ideológico eficaz para a adaptação do alunado às regras de comportamento político (ou apolitico) vigentes. (Silva, 2000, p. 1)
Devemos estar atentos aos parâmetros de lucratividade, eficiência e suas decorrências quanto à qualidade de ensino. Do ponto de vista empresarial a manutenção da clientela é fundamental e nessa medida é fator decisivo para a definição de exigências acadêmicas. Tal situação
redundava num aumento visível do número de graduados em nível superior e isto também vinha ao encontro das expectativas do governo, na medida em que se constituía como uma maneira de alimentar com ilusões e falsas esperanças os anseios de ascensão da classe média. (Silva, 2000, p. 1)
A Universidade assim encaminhada, sem sua função transcendente torna-se uma "multiversidade," composta de partes que perseguem fins isolados. Na procura pela sua dimensão plural fingidamente aliada à perseguição do respeito à demanda diversa, deparamo-nos com sua fragmentação. Desprovida de uma função simbólica relevante e impossibilitada economicamente de assumir um papel de ponta na pesquisa científica, ela se esfacela (Teixeira Coelho, 1998).
A formulação de políticas está diretamente ligada à estrutura e natureza do Estado, e envolve em grande parte a representação de interesses que são por elas implementados ou bloqueados. As questões referentes a como os interesses são representados, de quem são esses interesses e qual a justificativa para representá-los expressam grande parte da reflexão sobre política.
O fato é que a noção de "interesse" ocupa um lugar central na teoria social moderna, na época da expansão e consolidação da sociedade burguesa. A noção aparece claramente vinculada a uma concepção individualista, "materialista", da sociedade: "interesse" é freqüentemente sinônimo de benefício material, algo que pode ser medido pela razão calculadora. É curioso observar que, em várias línguas latinas... a palavra interesse é sinônimo de juro ou de lucro, com o que fica marcada a vinculação do interesse com o ganho material imediato. E , mais do que isso, observa-se no pensamento moderno uma valorização do interesse (entendido como sinônimo de racionalidade) em relação à paixão. (Coutinho, 1989, p. 48)
De outro lado, as teorias sobre a construção do pensamento liberal mostram o Estado existindo com a finalidade de garantir interesses externos à sua alçada e se expressando pela seguinte lógica:
o Estado em si não representa interesses concretos;ele assegura que os interesses se explicitem em sua esfera própria, que é a esfera privada. Não é por acaso, portanto, que o pensamento liberal se centra no postulado da limitação do poder, em contraste com o pensamento democrático, que tem como eixo central a distribuição (ou socialização) do poder. A preocupação do liberalismo é limitar o poder; daí a exigência do Estado mínimo, do Estado que só intervém quando estritamente necessário. (Coutinho, 1989, p. 48)
"A solução não é suficiente para debelar o problema" (Paulo Leminski). A proposta de um novo caminho deve se voltar para a construção de uma ordem social mais justa e procurar delinear novas estratégias para a inserção social dos indivíduos. No entanto, a resposta que temos ouvido em relação à produção dessa cultura crítica, é aquela "que nos apresenta uma nação em plena fase de melhoramento técnico e de progresso social, onde há lugar para todos desde que trabalhem e cumpram assiduamente seus deveres na ocupação a que se destinam" (Bosi, 1992, p. 19). A mensagem é clara: uma exigência de produtividade na qual o trabalho, como um direito do cidadão, é colocado como mediador de identidades.
A discussão sobre as transformações do sistema educativo têm estabelecido um diálogo com a Sociedade a partir de um discurso apoiado na competência tecnológica, na urgência de renovação diante da imobilidade das instituições e no enxugamento da formação visando uma rápida aprendizagem para uma imediata aplicação na esfera do trabalho. Toda argumentação contrária tem recebido franca oposição, assentada na atribuição de retrocesso e falta de visão de futuro.

PROPOSTA ATUAL DE TRANSFORMAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR

A transformação do Ensino Superior proposta pelo atual governo através dessa nova legislação apóia-se em princípios educacionais que se traduzem por um modelo sustentado em dois pontos: Diretrizes Curriculares e Avaliação. De posse de um discurso que defende o livre acesso às instituições de ensino superior, a atenção à comunidade e a oferta diversificada de cursos para atingir diferentes demandas, esse modelo revela interesses voltados para a criação de ofertas de aprendizagens, como se esta não tivesse como pressuposto um modelo educacional. Encobertos os significados ficamos à mercê da retórica, do uso esvaziado das palavras.
Expressa, através desses pontos, um modelo assentado em princípios regulados por uma lógica (de mercado/de capital) onde à flexibilidade e autonomia conferidas às instituições corresponde uma avaliação estabelecida sobre padrões definidos e fixados previamente. À abertura que o conceito de flexibilidade parece oferecer corresponde um fechamento ou controle pela avaliação. O modelo atual supõe uma adaptação dos currículos às necessidades sociais das diferentes regiões do país. A flexibilidade deveria atender a essa exigência. Deparamo-nos, no entanto, com um certo deslizamento semântico por onde demanda social se identifica à demanda empresarial. Conceitos mal definidos como habilidade e competência começam a fazer parte do vocabulário acadêmico propondo, na verdade, uma profunda alteração da relação Educação/Trabalho supostamente a serviço de um ajuste necessário ao mundo globalizado. Em realidade, há uma verdadeira importação de conceitos e uma tradução de noções segundo significações estranhas à sua extração original. Assim sustentado, o modelo atende aos princípios que ancoram a política de ensino superior, voltada para a representação de interesses traduzidos pelo enxugamento do Estado, pela expansão ou acesso facilitado etc.
Todo o debate pela "ampliação das oportunidades educacionais e outros valores democráticos, da década de setenta, foram substituídos pelas idéias da nova direita, que traz para a educação os valores e as exigências do mercado" (Dias Sobrinho, 1996, p. 145): o estabelecimento das instituições privadas, a competição, a produtividade, a excelência, os interesses do consumidor, enfim, "a cultura da empresa."
Estas mudanças manifestam a presença de duas lógicas institucionais. Desvaloriza-se a lógica universitária naquilo que ela não coincide com a lógica empresarial. O problema então diz respeito à definição do produto da Universidade e do processo de produção, se quisermos usar uma metáfora economicista. O perigo do quantitativismo (o que se produz, em quanto tempo e quanto custa) nos conduz a confundir uma organização de trabalho intensiva como é a universidade a uma organização de capital-intensiva como tendem a ser as empresas (Santos, 1995, p. 218). A presença da lógica empresarial pode ser sentida também na criação das fundações nas universidades. "Como verdadeiras organizações paralelas, essas fundações de direito privado passaram a usar os recursos humanos, instalações, os laboratórios e os campos de cultivo para vender serviços e produtos no mercado, como se fossem empresas privadas" (Cunha, 1998, p. 12). Essas fundações mantém o controle de departamentos, instalações e não contribuem para a formação. Funcionam com um modus operandi das empresas defendido por aqueles que desejam a privatização das instituições públicas.
O cenário atual evidencia,portanto, mudanças radicais. Estas se manifestam, da preocupação com o ensino à distância à redefinição do sentido de Universidade; dos problemas ligados à privatização x globalização, à preocupação com a determinação dos currículos voltados para as necessidades de formação de mão de obra a ser utilizada pelo mercado. Os estabelecimentos de ensino são convocados a se converter em empresas. Os estudantes tornam-se clientes.
Observa-se, no cenário contemporâneo, uma preocupação com os processos avaliativos referentes à formação em nível superior. Neste contexto a avaliação tem sido utilizada como referência para classificar as instituições, como indicador para a concessão de benefícios e como parâmetro para a manutenção do funcionamento das instituições de ensino superior. Assim, a implantação de políticas públicas para o ensino superior supõe, como estratégia fundamental, a instalação de um sistema de avaliação.
Avaliação é necessária e faz parte do processo formativo. Ela se produz e se efetiva num espaço social de valores. Não é neutra.
Por ser valorativa todos os questionamentos que ela suscita não dizem respeito a aspectos técnicos embora assim o pareça, mas se referem a concepções sobre Sociedade e Educação Superior. Como decorrência, não há uma concepção única de Avaliação Institucional porque são muitas e contraditórias as concepções sobre Educação, Sociedade e Universidade ... Os principais equívocos do sistema de avaliação são principalmente de ordem política e pedagógica e, sendo pedagógica é também por isso mesmo, política e ética. (Dias Sobrinho, 1996, p. 185)
Qualquer reflexão sobre Avaliação, no entanto, supõe uma distinção inicial entre o que é medir e o que é avaliar. Medir é uma parte de um processo muito mais amplo. Um procedimento isolado não é um programa formativo e portanto o Exame Nacional de Cursos, um dos procedimentos do Sistema de Avaliação do Ensino Superior, não o é também. Ele se sustenta em algumas suposições assentadas numa proposta mecanicista de ensino. Simplifica os currículos quando os retira da complexidade da prática de ensino/aprendizado na relação professor-aluno. Estes passam a ser definidos por conteúdos pretensamente neutros. O que importa é o Resultado. Não há avaliação do conhecimento.Reduz-se a formação à aquisição de elementos simples, próprios a serem medidos. Do ponto de vista técnico; estabelece uma relação causal entre o bom desempenho numa prova e o futuro desempenho profissional. O que pode haver, unicamente, é a relação estatística. No que se refere à cidadania ativa e crítica, a tecnificação da formação abafa a consciência de nacionalidade e contribui para a desintegração da sociedade.
O que se pretende? O que se mede então? Produtos da Aprendizagem. Quais? Aqueles escolhidos como padrão de qualidade. Atrelado a um pensamento tecnológico, o discurso sobre avaliação, embora procure se sustentar a partir de argumentos apoiados na melhoria do ensino, que se revelaria como melhoria nos "futuros serviços," adere a uma alta rigidez, oposta à flexibilização anunciada: os fins são fixados (o que é bom e o que é mau); procura-se desenvolver um aprimoramento dos meios para atingi-los.
Numa sociedade com valores estreitamente expressos pela modernização como diretamente decorrente de progresso técnico, cabe à Avaliação medir o desempenho/êxito ou fracasso nos resultados obtidos. Há flexibilização dos meios, mas com posterior controle ou uma nova regulação dos resultados por parte do Estado, com todos os riscos de burocratização que isso acarreta (Dias Sobrinho, 1996).
Supõe-se então que a Educação deva ser definida por políticas apoiadas num aparato técnico supostamente neutro e acima da política, e que expresse sua fidedignidade na operação de instrumentos, único critério para sua credibilidade. Prescinde de um programa com princípios, objetivos e ações que, de forma articulada e combinando distintos procedimentos, pudesse vir a contribuir para a melhoria da qualidade do ensino e a transformação da Educação no país. O modelo proposto sugere uma neutralidade que elimina o agente da avaliação. Dessa forma, "O avaliador já não será o docente. O professor perde a imagem integrada de sua profissão para converter-se em um operário a mais na linha de produção educativa" (Dias Sobrinho, 1996, p. 163).
Neutraliza-se o sujeito da ação. Assim a avaliação é um instrumento a serviço do reforçamento de valores, atrelados a políticas encadeadas por grandes organismos internacionais, cujas propostas para a Educação têm, portanto, na Avaliação uma estratégia privilegiada para a sua implantação.
Perguntemo-nos: Qual avaliação? Que Universidade? Para quem? Para qual sociedade? Para que? Que tipo de profissional e para qual mundo?
Os grandes problemas estão no campo dos valores políticos e filosóficos. Não dizem respeito a questões formais sobre organização e gerenciamento das Instituições Educativas.
Assim colocado, reconhecemos no sistema atual a contradição sobre a qual nos referimos anteriormente, entre o princípio de igualdade de oportunidades e de mobilidade social através da escola e a continuação, a consolidação e até o aprofundamento das desigualdades sociais.
Neste cenário e considerando a implementação das novas diretrizes curriculares para os cursos, estabelece-se um ambiente propício para que, extrapolando a esfera governamental de avaliação, se defina ou venha a se construir um outro caminho, numa perspectiva que seja processual, contínua e que tenha como meta principal a melhoria da qualidade da formação. Para que este objetivo seja alcançado, torna-se indispensável o aperfeiçoamento e a construção de indicadores de avaliação que reflitam o processo de formação dos graduandos e que, ao mesmo tempo, subsidiem o aperfeiçoamento deste processo formativo. Cumpre desenvolver um modelo de avaliação que tenha o foco não apenas nos resultados aferidos a partir dos egressos dos cursos mas que considere, sobretudo, o processo de formação, que supõe apoio noutros princípios.
Temos clareza que a discussão sobre construção de modelos requer a atenção sobre a dicotomia Educação-Trabalho. Trabalho e Mercado estão neste período pós-moderno intrinsecamente envolvidos. Neste cenário, a questão mais urgente nos remete à complexidade das relações estabelecidas entre os problemas políticos, éticos, culturais e psicológicos que estão na base da sustentação de programas em Educação e envolvem o eixo fundamental da formulação das políticas públicas nessa área. Com base nas conexões estabelecidas entre esses fatores pode-se pensar nas questões específicas envolvidas na produção desse novo modelo.
Temos visto neste século que o trabalho assentou-se sobre a universalização das relações de troca e sobre a sua própria transformação em força de trabalho. Reconhecemos o abismo entre o que se descreve como valor de uso e valor de troca. O trabalho ocupa um lugar especial na vida mental dos indivíduos. Nossa atenção se volta para a compreensão deste tema no conjunto das reflexões deste trabalho, na medida em que uma análise sobre as transformações no âmbito do trabalho no mundo atual exibe, por um lado, as novas exigências que estão sendo feitas aos sujeitos em suas relações cotidianas e, como conseqüência, evidencia, por outro lado, os efeitos de subjetivação decorrentes.
Fazendo triunfar a Razão Instrumental o futuro trabalhador não pode se expressar a não ser sob duas "modalidades: enquanto indivíduo competitivo ..., ou enquanto pessoa manipulável e sujeita a trabalho forçado" (Enriquez, 1995, p. 10). Essa estranha articulação carrega como efeito, a emergência da quantificação/matematização como regulador social e dessa forma a "economia" inicia seu reinado.
Esse ideário racional ocidental constitui-se na realidade como o efeito perverso do esforço pela matematização, como se dela pudesse advir um maior controle sobre o meio, com a conseqüente possibilidade de um maior grau de certeza nas decisões a se tomar.
Ilusão de controle ou erro dos homens, esse esforço instala valores que privilegiam a racionalidade dos meios em relação aos fins pretendidos e que se traduzem pelo cálculo custo x benefício. Dessa forma, os valores democráticos são aqui rapidamente esfacelados.
Os efeitos dessa equação custo x benefício, portanto, podem ser aberrantes: ocultando-se a referência social e ética, um meio técnica e economicamente válido, pode ser moral ou socialmente inaceitável (Enriquez, 1995, p. 11).
Razão ensandecida e violenta a cultivar o "progresso econômico," produz um imaginário social de competitividade, de luta individual para acesso aos bens produzidos, em que o indivíduo "livre" jamais põe em discussão a lógica do desenvolvimento capitalista.
Nossa constelação ideológico-cultural de fim de século exige uma nova luta: o reconhecimento dos lugares em que as tecnologias dissimulam os senhores perversos aos quais elas servem. Em nome do progresso e do crescimento social, essas tecnologias referendam valores que se contradizem. Assim, aquilo que serve aos interesses é incorporado ao discurso e à prática. A "importação" entre os modelos não respeita fronteiras. Ela define os "raptos ideológicos" (Patto, 1987, p. 92), que introduzem uma falsa história no lugar da verdadeira e instalam assim obstáculos ao conhecimento do campo teórico-prático e ao reconhecimento dos sujeitos nas suas relações cotidianas. (Fernandes, 1999, p. 46)
Segundo Fernandes (1996) "A luta é contra essa cultura da violência que surrupia o quanto pode da sensibilidade e imaginação e nos deixa atrelados à coisa, à posse do benefício, à prevalência do imediato" (p. 75). Só assim, nesta luta, a Universidade poderá garantir as mais preciosas funções que pode exercer enquanto diagnóstico social e discussão sobre a proposição de políticas públicas. Cabe a ela resistir à submissão a um regime de ajuste a políticas pré-fabricadas.
Devemos operar uma contínua vigilância sobre essas ações para assegurar a ampliação do político, a capacidade de discriminação entre as várias formas de poder e uma contínua reflexão centrada na promoção da criatividade da ação individual e coletiva.


Fernandes, M. I. A. (2001). Abandonment of the Institutions: the Development of Public Policies and the University. Psicologia USP, 12 (2), 11-28.
This paper discuss the on-going proposal to restructure the Brazilian Higher Education System as a consequence of the modification of the law (LDB) in 1996. It focuses on three basic issues, as follows: the recent history concerning the formulation of public policies in the educational area and the implications of a lack of discrimination between Higher Education and University; the definition of the guidelines for Higher Education determined by international organisms which have private interests over the current formation of professionals; and the identification of the principles that sustain the model which supports this change, meaning the Curricular General Orientations for the undergraduate courses and the consolidation of a evaluation system for Higher Education.

REFERÊNCIAS

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